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A cegueira branca e o desespero vigente

por Chico Lopes *
publicado em 12/05/2008.

"Ensaio sobre a cegueira", romance de José Saramago, voltará a ser comentado, é certeza, devido ao filme de Fernando Meirelles, "Blindness", que abriu Cannes e obteve aplausos e críticas negativas. Meirelles, dessa vez, não foi quase unanimidade, como com os filmes "Cidade de Deus" e "O jardineiro fiel". Na Internet americana, só li críticas desfavoráveis, e ressalva-se, no caso, apenas a interpretação da atriz Juliane Moore, havendo até quem diga que ela poderá ser indicada a um Oscar por fazer a mulher de um médico, única com visão no meio de uma epidemia de cegueira.

Em todo caso, é preciso conhecer o livro original para que se entenda melhor o que Meirelles quis, tentou fazer e conseguiu ou não conseguiu (nada posso dizer sobre o filme, que estréia no Brasil apenas em setembro próximo).

O CORDÃO ROMPIDO

Mesmo para os habituados com leituras difíceis, "Ensaio sobre a cegueira" não é um livro fácil. A certa altura, lê-lo é bem parecido a padecê-lo.
Mas isso conta como mérito para Saramago, também: sua parábola sobre o vazio e o desespero que nos cercam procura ser precisa, incômoda, inquietar ao máximo. É preciso um estado de espírito especial para enfrentá-la. Em Cannes, um crítico se abalou com "Blindness" por achá-lo muito "deprimente" como abertura de um festival de cinema. Compreende-se.

Não é um livro concessivo nem flerta minimamente com o entretenimento, e a dificuldade, para o grande público, deverá começar aí. Em se tratando de romances que oferecem uma situação sufocante em crescendo, espera-se sempre que um final redentor clareie aquilo e nos liberte, nos alivie. Mas Saramago vai noutra direção: mostra evidente prazer em pormenorizar com crueldade uma situação cruel, implausível, uma enorme metáfora do mal-estar do mundo presente através de sua epidemia de cegueira, que é curiosa: as pessoas não se tornam exatamente cegas, mas passam a enxergar uma claridade ofuscante, excessiva, que parece precisamente o negativo da visibilidade.

Sem cair na tentação de ser camusiano e fazer um novo "A peste" (com que o romance poderia apresentar inevitáveis semelhanças), Saramago procura descer à crueza mais crua das conseqüências dessa epidemia: o isolamento a que as autoridades obrigam os a princípio poucos cegos é de uma precisão descritiva rara, coisa de maestria literária autêntica - é quase possível sentir o que sentem aqueles cegos se debatendo uns contra os outros, invadidos, despojados de suas preciosas personas, forçados à promiscuidade, no escuro (ou na claridade da ausência de vista - há muitas ironias nesse uso magistral que Saramago faz do branco).

A hostilidade que já existe em condições normais entre os homens - diferenças de classe, cultura, hábitos etc - se exacerba até o mais completo desespero. Para complicar a situação de isolamento dos cegos, um exército os cerca do lado de fora de seu confinamento e atira nos que tentam fugir daquele ambiente infecto, impedindo qualquer avanço (que já seria, de qualquer modo, muito difícil) porque se acredita que a cegueira "pega".

E "pega" mesmo: Saramago pintou com grande habilidade a atmosfera da cegueira moral, se assim pode ser chamada, em que todos vivemos. Quem enxerga os outros, hoje em dia? Numa sociedade que só tem feito aperfeiçoar os meios favoráveis ao culto do egocentrismo e do distanciamento, despida de solidariedade, de afeto, calcada na hostilidade e na agressividade territorial primitiva (mas que vem banhada por cintilâncias tecnológicas), o Outro só pode ser conhecido através da calamidade. E, para muitas pessoas, hoje em dia, nada deverá parecer mais calamitoso que a abolição forçada, inapelável, das fronteiras de classe, poder aquisitivo e preconceitos que as separam convenientemente dos que desprezam. A cegueira liquidará esse "cordão sanitário". A calamidade é coisa que se abate sobre o coletivo, suprimindo diferenças mesquinhamente cultivadas, porque força ao reconhecimento da falibilidade geral.

O contágio dessa epidemia de Saramago é fácil e apavorante. Tal como em "A peste", há nisso uma parábola. É precisamente o mistério de nossa fragilidade e nossa demência como seres egoístas, a necessidade de nossa redenção pelo conhecimento e a proximidade do Outro, que o escritor está pregando. Ou parábola não seria.

Formalmente, não gosto em geral dos livros de Saramago por seu uso da não-pontuação e nem consigo ter empatia por seus temas, e também acho que há dele títulos em excesso no mercado editorial, o que pode confundir. Mas "Ensaio sobre a cegueira", talvez pela força irresistível de parábola, me arrastou. Fui "pego".

A capa da primeira edição do livro (Companhia das Letras) traz uma imagem preciosa de algum pintor surrealista (talvez Magritte, não me lembro), sugerindo réplica e impessoalidade em duas figuras masculinas postas de costas. Elas não se conhecem, embora sejam idênticas, e ao olhar do espectador não é dado conhecê-las. A cegueira mais perfeita...

EXORCIZANDO O TRÁGICO

Vamos todos esperar pelo filme. Em geral, a reação da crítica americana tem muito a ver com o peso que a indústria do entretenimento exerce sobre ela. Os filmes a princípio menos degustáveis, porque "deprimentes", padecem de rejeição, porque há baixa tolerância de um dos princípios óbvios da tragédia - a inexorabilidade - hoje em dia.

Basta prestar atenção aos roteiros da maior parte dos filmes americanos e se verá que eles evitam como a peste os finais infelizes, em aberto, ou sem redenções individuais. Isso prejudicou muito uma produção como "Eu sou a lenda", por exemplo, e afetou violentamente o inteligente "Mais estranho que a ficção", que foi dissolvendo em pieguice e consolo sentimental barato (e inverossímil) uma história que se desenvolvia com um engenho surpreendente.

Os americanos não parecem suportar que a vida não seja remediável, ainda que de modo mentiroso. Até o grande Werner Herzog caiu nessa vala demagógica, com "O sobrevivente".

Meirelles merece atenção. E o filme também, sem dúvida alguma.






Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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