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LOBOS, LEÕES E ESTELIONATÁRIOS
por André Carlos Salzano Masini
*
publicado em 01/10/2003.
Um sujeito entrou no estabelecimento comercial de onde eu acabara de sair, e, enganando a balconista, conseguiu apoderar-se do cheque, trocando-o por dinheiro. Depois acrescentou-lhe dois zeros e sacou-o no caixa, naufragando minha conta nas profundezas vermelhas do cheque especial.
Eu – que estava em um dia particularmente corrido, com a cabeça perdida em preocupações – não percebi que estava sendo observado, nem tive o cuidado de fazer o cheque nominal e cruzado, coisa que sempre faço.
Mais tarde, voltando da delegacia – com minha fila de preocupações acrescida de mais essa – pus-me a pensar sobre nossa vida civilizada, e a compará-la com a vida na natureza.
Na natureza, os animais vivem em permanente estado de perigo e alerta. Ao pastar, por exemplo, mesmo de cabeças abaixadas, eles mantém os ouvidos sempre atentos a qualquer alarme dos companheiros ou qualquer barulho suspeito... Quando caminham, seus olhos inquietos vão perscrutando cada sombra debaixo dos arbustos, cada movimento por detrás das árvores... De onde menos se espera pode surgir uma avalanche de garras e dentes e dar fim às suas vidas...
Também nós, homens e mulheres, vivíamos assim em tempos idos. Hoje, graças à civilização, não precisamos mais ocupar nossos sentidos em vigiar leões, leopardos ou hienas (exceção talvez de alguns irmãos africanos); hoje não precisamos dedicar nossas mentes a cuidar do momento presente... Elas podem divagar por problemas e abstrações distantes...
Mas será que isso é mesmo uma vantagem?
Se tentarmos "contabilizar" a vida em números, certamente concluiremos que sim. Vive-se "mais" anos hoje, com "menos" doenças, e por aí vai... Mas se olharmos para a "forma" como vivemos, aí as coisas tornam-se menos óbvias...
Hoje não há mais feras ao nosso redor, mas temos a cabeça sempre repleta de todo o tipo de preocupações. No trabalho, pensamos nos problemas da casa, no aumento do condomínio, no horário de pegar os filhos na escola... Em casa, pensamos nas contas a pagar, na reestruturação da empresa, nos relatórios atrasados, no desemprego, no envelhecimento... tememos fantasmas do presente, deliramos ambições do futuro, remoemos frustrações do passado...
Questões abstratas e ninharias cotidianas solicitam-nos tanto, que quase não notamos a vida de verdade que acontece à nossa volta: as plantas que nascem, crescem e morrem, o céu estrelado que muda a cada noite, os animais que correm e voam cheios de disposição, nossos próprios parentes com suas alegrias e dores, nosso próprio corpo que vai perdendo a vitalidade...
A vida parece acontecer fora de nós... nos computadores dos bancos, na televisão, nas reuniões de nossos chefes, e tudo vai passando, passando, como se apenas assistíssemos.
Não. Não precisamos mais nos preocupar com os leões, mas ainda temos feras que nos perseguem. Feras ardilosas e pertinazes, contra as quais não adianta estarmos alertas, nem apurarmos olhos e ouvidos. Feras que nos atacam por dentro e não são detectadas por nossos sentidos... Feras que nos afastam do momento presente... Feras abstratas, que vão tornando nossas vidas também abstratas...
Eu tenho a experiência – e não sei se o leitor concorda comigo – de que nenhum problema ou tarefa é perturbador, desde que possamos nos dedicar exclusivamente a ele. Um carro quebrado, por exemplo, não é nenhum incômodo quando nos ocupamos em consertá-lo. Mas é algo desesperador quando pensamos no banco que está fechando. O mesmo vale para o trabalho no escritório, as tarefas caseiras ou qualquer outra coisa. A situação enlouquecedora é estar resolvendo um problema e simultaneamente preocupando-se com outro.
Qual de nós, no mundo moderno, pode se dar ao luxo de pensar exclusivamente no que está fazendo a cada momento?
Parece-me que isso é privilégio dos seres selvagens, com seus inimigos de carne e osso...
É nessas horas que eu me pergunto se realmente ganhamos algo com a civilização...
Mas, enfim, voltando aos cheques. Já que não estamos mais alertas às feras carnívoras, estejamos alertas a nossos irmãos civilizados! Homo homini lupus. Emitamos somente cheques nominais e cruzados, escritos com caneta esferográfica grossa; reescrevamos o valor no verso; e peçamos ao recebedor para não entregá-lo a terceiros!
Sobre o Autor
André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.
contato: andre@casadacultura.org
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