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O olhar de um forasteiro que ficou
por Chico Lopes
*
publicado em 09/11/2007.
Minha relação com Poços de Caldas começa em 1991. A certa altura das proximidades de São João da Boa Vista, num ônibus que me trazia do interior de S.Paulo para o Sul de Minas, avistei o paredão de montanhas azuis lá à distância e sussurrei comigo mesmo: "Eis Minas..." Era um encantamento de coisa vista pela primeira vez. E eu ouvi o chamado daquele azul.
Casamento e circunstâncias práticas para cá me trouxeram. Trabalhei neste Mantiqueira onde escrevo e onde fiquei até 1998. Passei ao trabalho regular no Instituto Moreira Salles - Casa da Cultura de Poços, onde permaneço. Vários livros publicados. Uma filha, que chegou aqui com um aninho e logo terá 16 anos. Uma mulher sul-mineira, de Botelhos. Ao casar-me com ela, senti, sem exagero, ter abraçado toda uma parte de Minas e seus mistérios. A doçura, as serras, as árvores, o Infinito.
Tendo chegado aqui aos 39 anos, sempre me senti meio visitante de passagem, turista, forasteiro, e demorei bastante a me integrar ao lugar. Pelo simples fato de que uma alma geograficamente dividida (metade num estado, metade noutro) tem sempre dois deuses diferentes a que prestar cultos. E essa duplicidade fazia com que eu me sentisse ora decididamente integrado, ora decididamente forasteiro. Não mudei muito, 15 anos depois. Mas o meio-mineiro já se impõe e meus velhos amigos, quando vêm para cá me rever, notam, com humor, minhas sutis mudanças de sotaque e outras tantas.
Amei, desde o início, a leveza e a claridade do ar, os dias de eterna brisa, mesmo quando o calor prevalece. Os plátanos e suas folhas caindo aqui e ali. O friozinho europeu que nos percorre. A imponência e o mistério da serra de São Domingos, seu denso verde-escuro quase azul-marinho. O parque Afonso Junqueira, suas aléias, flores, transeuntes. A beleza de certas ruas espessamente fechadas pelo roxo inebriante das quaresmeiras. A gentileza de algumas pessoas, que parecem carregar dentro de si um tesouro de lembranças de Poços de que não posso, como forasteiro, compartilhar por completo. Rostos que me acolheram, gente que me pergunta "Bão, seu Francisco?" com bonomia. Jovens inesperadamente bem-educados, oferecendo lugares aos velhos nos ônibus. E o sono delicioso que a cidade propicia, diferente de todos que se tem nos lugares onde vivi, no interior de S.Paulo. O sono que Poços oferece é meio enfeitiçado, como se nos devolvesse ao fundo da terra, a uma profunda e misteriosa paz mineral. E há, nas manhãs seguintes, a limpeza, a pureza radiante dos céus mais azuis possíveis.
Há muitas cidades numa cidade, como disse no início. A Poços por onde ando não é certamente a Poços de muitos nativos, mas é uma Poços tão real quanto a que se conhece, ainda que de outro feitio. É a Poços dos forasteiros que vieram e ficaram. Que trocaram suas terras natais por uma incógnita, um enigma feito de serras, céus rosados, ruas largas, ares limpos e luares imaculados. Que, ao dizerem "bom dia" a algum nativo, dizem-no com outra alma, vendo outras ruas, outra configuração de telhados, letreiros, avenidas, praças. Mas, comungando do mesmo sentimento de estar debaixo de um céu extraordinário. De tal modo que esse "bom dia" é de fato um sincero desejo de um bom dia, desejo que emerge dos fundos minerais dessas noites particularmente bem dormidas.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG
Email: franlopes54@terra.com.br
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