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Rios e desertos desconhecidos de um romancista baiano
por Chico Lopes
*
publicado em 06/10/2007.
Sempre fui leitor de ficção mais que de outra coisa, mas, em geral, pratico muita releitura; por vezes, autores novos me desanimam devido ao meu vezo conservador de querer trilhar a trilha do já sabido, jáconhecido, experimentado e amado (e os livros muito amados só o são porque muito relidos). De modo que cometo injustiças e omissões, nesse campo, mas não estou sozinho no erro. O comodismo conspira para que percamos muita coisa. E não gosto de opinar sobre livros que não li, ou li mal (quem prestar atenção a certos comentários por aí, notará que a prática de comentar sem ter lido não é rara).
Carlos Barbosa nasceu em 1958 em Oliveira dos Brejinhos, no sertão baiano, e passou sua infância em Ibotirama, beiradas do São Francisco. Portanto, sabia do que falava ao elaborar esse seu primeiro romance, lançado pela Bom Texto em 2002. A dama do Velho Chico fala de paragens que nós daqui, do Sudeste, conhecemos muito mal. Quanto ao rio, flutua em nossa lembrança, com seus barcos, feito um Mississipi caboclo. Imaginamos aquelas embarcações com suas carrancas a partir de lembranças de documentários, programas especiais de tevê. Tudo fica na superfície. Mas a vantagem da Literatura é precisamente esta: livros nos vêm de outra parte, perfuram o já-sabido, trazem mundos de cujas existências mal suspeitamos, não valendo, para adivinhá-los, os nossos estereótipos ou informações de segunda mão.
REGIONALISMO? A QUALIDADE LITERÁRIA ESTÁ ACIMA DISSO
Há menosprezo inevitável quando se fala de regionalismo, mas os equívocos, nesse campo, são fartos. A literatura de A dama do Velho Chico traz muitos traços do regionalismo que alguns abominam, mas, e daí? quando se trata de qualidade literária, pouco importa que se tal coisa derive da corrente X ou Y. Os rótulos existem para acomodar escolas, tendências, autores, em nichos bem cômodos e de fácil classificação para os estudiosos, críticos e outros empertigados, e, sob rótulos execrados, claro que há muita coisa boa desdenhada cegamente. Há nisso um mal-entendido besta,visto que, como leitor que ama viajar através de romances, adoro que os livros de ficção me tragam paragens aonde nunca irei, que de outro modo nunca conheceria. Portanto, todo "regional" - ou seja, todo mundo peculiar, desconhecido e insólito que mereça registro - é muito bem-vindo.
Isso não significa aderir a autores superficiais, eufóricos e tão honestos quanto folhetos turísticos. Livros de viagens feitos nas coxas e descrições turísticas não preenchem o essencial que busco: uma visão do Desconhecido que parta de dentro dos personagens, de alentadas e fundas vivências. Os áridos encantos da Argélia não são as mesmos na boca de um agente de viagens e na escrita de Albert Camus, e, claro, estão mais completos e sentidos é no escritor. Há uma Rússia que nos vem mais pelas paisagens de alma de Dostoievski do que nos viria da descrição objetiva de estepes, gelos e cidades sombrias como São Petersburgo. Todo autor que se preza é fiel a um certo mundo geográfico (que dizer de Faulkner, com seu eterno Sul americano?), preso a um dado circuito telúrico, um dado atavismo. Daí vem a sua inspiração mais profunda, que elepode transfigurar em universalidade, na medida de seu talento. Barbosa faz precisamente isso: fala com honestidade, vigor e solidez (sua prosa não tem frescuras ou poses) daquilo que sabe. E a gente se deixa envolver pelo romance porque sente que ele sabe. Um leitor experimentado nunca se engana com essas coisas.
É a história de uma família, no centro dramático da qual se encontra Daura, sertaneja que é femme fatale sem querer. Três homens a amam: seu tio, Vilino, seu irmão mais velho, Missinho, e um vaqueiro, Agenor. Numa ida de barco a Bom Jesus da Lapa, para a família cumprir missão religiosa, o vaqueiro mata Dualdo, o pai de Daura, e o tio, interessado até o delírio no corpo da sobrinha, fica para tomar conta da família, odiado por Missinho,que afinal ama a irmã com um amor incestuoso mal percebido como pecado - parece antes decorrência de um mundo excessivamente endogâmico, pobre e primitivo. Missinho matará o tio que, bode exasperado pelo calor e pela sensualidade temperada a cachaça e frustração, primeiro possui a cunhada viúva e depois tenta estuprar a sobrinha. A mãe de Daura se mata, ela cai no mundo, Missinho (acreditando ter matado não só o tio, como a irmã) se desespera e desaparece. Enredo que poderia, não fosse tão verossímil nas mãos de Barbosa, parecer melodramático demais.
O entorno desse enredo entrará por nossos sentidos - descrições preciosas do rio São Francisco (Barbosa se vale de rica bibliografia para juntar História à poesia), da seca que atinge o lugar apesar do rio, das superstições e lendas, das cantigas e provérbios regionais, fauna e flora. Barbosa tem mão poética para a descrição. E parece que hoje em dia, com romances excessivamente urbanos, os novos andam se esquecendo da necessidade de boas descrições do natural - há ficção demais centrada num mundo cinza e pobremente evocativo, indo mais para o interior das personagens que para os encantos do mundo exterior. Ninguém precisa querer ser de novo John Ruskin, nada disso. Mas um dos maiores prazeres que a prosa pode dar é o das descrições naturais precisas e belas.
Um romance também é um rio denso com muitos afluentes, e Barbosa não se esquece disso - a história é contada por múltiplos e inesperados personagens, avançando sempre quando novas bocas a complementam, enriquecendo-se com as divergências e detalhes de cada ponto de vista. Há momentos mágicos - o Vapor Encantado, que é um fantasma de barco do rio comentado pelos tripulantes da embarcação, me fez pensar um pouco no transatlântico Rex, que passa pela Rimini de Fellini no encantatório Amarcord e gostei principalmente do talento metafórico de Barbosa ao contar da areia de Bom Jardim, que, ubíqua, ganha força de símbolo (fazendo ainda mais presença no final). Barbosa aproveita bem, dramaticamente, essa insinuação de Deserto. Pensei nas areias e naquele vendaval terrível que varrem o forte onde Kit (Debra Winger) estápresa com o marido, Port (John Malcovich), em O céu que nos protege, de Bertolucci.
A cogitação de A dama do Velho Chico ser um romance muito cinematográfico, aliás, não está fora de sua gênese: Barbosa conversou com o diretor Beto Brant para dele elaborar um roteiro, quando começou a escrevê-lo, mas as circunstâncias mudaram e ele foi engolido pelo apetite natural de expansão da narrativa, indo a caminhos inesperados. Toda verdadeira obra tem sempre uma existência carnívora e imprevisível dentro de seu autor.
Com 243 páginas, é um romance que se lê com interesse crescente, e nos dá a certeza de que, com aquele mundo ficcional, geográfico, a um só tempo prosaico de doer e lendário de estarrecer, à sua disposição, Barbosa tem nas mãos matéria-prima para muitos outros romances com o mesmo - ou com ainda maior - alcance. Vale esperar com ansiedade por seus próximos passos.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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