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Lírica forjada em discreta beleza

por Fabrício Carpinejar *
publicado em 26/08/2007.

Almadéna, de Mariana Ianelli, imita um transe religioso com o objetivo de fazer uma síntese do espírito

Almadéna, o quinto livro da paulista Mariana Ianelli, já carrega no título uma promessa de reza. Significa pequena torre de mesquita de três ou quatro andares, de onde se anuncia aos muçulmanos a hora das orações. É um posto privilegiado, no qual o passado, o presente e o futuro estão suspensos pela profecia e pela convocação de seus fiéis. Não há tempo, apenas desígnios e destinos sendo cumpridos.

Desde o início, a autora firma um pacto, não é uma poesia que se lê, é uma poesia que exige uma adesão melódica como um hino. Entende-se "seguir" como aceitar a penumbra, a cláusula da devoção e da hipnose. Não estamos diante de uma poética de acontecimentos físicos, mas de "desacontecimentos". Envolta em círios, Mariana Ianelli canta a capela. Sem instrumento. Com uma passada longa e repetitiva (tomada de advérbios), que tenta trazer à tona a espera de uma mulher por seu amor, desde sua gestação, passando pela infância marcada de presságios, os dias juntos até a despedida para o alto-mar, gerando a perda.

É um livro que rumina influência dos cancioneiros portugueses e dialoga com o oceano, com um timbre essencialmente contemplativo e clássico, que se diferencia do minimalismo e realismo coloquial que dominam a poesia brasileira contemporânea. O mar como território oscilante e temerário, de descobertas e de tensas partidas. Há sempre o lugar íntimo - corpo e casa - abrindo-se ao lugar aberto, de risco e sofrimento.

Essa é a primeira surpresa, a aparição de uma voz ambiciosa, ainda jovem, antes dos 30, que pretende fazer uma síntese do espírito, uma súmula heróica subjetiva. Ao lado de Alexei Bueno, seu estilo destaca o enigma, mais romântico do que parnasiano, explorando com helenismo o dom sensorial. É a intuição que manda no jogo culto de paráfrases e dialética. As epígrafes de padre Antônio Viera anunciam o teatro do claro e do escuro, das aparências e máscaras. Não é uma arte da descoberta, e sim uma arte de releitura, de reviver os clássicos e reinstaurar um mundo de arquétipos pela mímesis.

O real não está em questão, mas o mandamento e o símbolo. A vida como a determinação dos deuses, ao invés de escolha e livre-arbítrio humanos. "O que finge existir não nos importa", diz um dos versos. A escritora lança uma problemática de estilo com sua obra. É um livro de vozes, não de voz, o que o tornará - para alguns - etéreo e hermético. São vozes oniscientes e onipotentes, conclusivas, que não estão partilhando intimidade, mas impondo sabedoria. O conhecimento já se deu, ele está sendo apenas transmitido. Daí a afluência de ligações como "portanto", "porque", "então" e "logo" na conjunção dos versos, e a pouca presença das perguntas e das dúvidas no decorrer do livro, que fariam do espaço mais atormentado e participativo.

Carece de uma vinculação com o perecível e o circunstancial, operando em um território mítico que nem sempre explica ao leitor como chegar a ele. As memórias, as visões, as miragens e as profecias se entrelaçam, provocando uma incessante dispersão. Isso posto, a delicadeza de Mariana Ianelli e seu esplendor estão justamente quando ela quebra a ascese espiritual pela descrição carnal das cenas. Quando ela volta do transe e atua como mediadora. Deixa a mensagem atemporal pela sua miudeza. Desce do mirante para o solo. Passa a ser voz individual e singular.

"Por um gole de rum,/ Por teus olhos antigos, / Ainda estar aqui. /Por pouco, muito pouco,/ Ainda acordar e vestir-se."

Nesse caso, cria uma aproximação, um doer das coisas, e permite a visualização de gestos simples e cotidianos. No momento em que assume uma persona polifônica e divina, de caráter coletivo, o tom fica ora determinante, ora abrupto. Fascina-se pela retórica e pela generalização do mundo, sem escolher um condutor concreto para focar tanta abstração.

"O ócio pelo ócio, /Fogo nos compêndios da História!/ Torne-se outro o que era um/ E nenhum o que era vário./ Perca-se o fio da memória./ Mais funda a noite,/ mais a fêmea se contorce./ Escuridão prostituta,/ Cruzes empestando as covas./ Não há dias que se desenrolem,/ Só um imenso atoleiro de horas /Onde dura o irracional./ Crianças contaminadas pelo tédio,/ Velhos fartos de deboche./ Vai subindo a fumaça do riso/ O pó do que eram ossos./ Toca uma flauta, esta flauta/ Universal como a treva/ E os irmão se consomem,/ Ladram e se consomem./ A necessidade de falar de tudo esvazia a intensidade do que se desejava falar."

As palavras agem, nem sempre interagem numa "obediência líquida". Perpetua-se uma troca de assunto e ambiente com aparente desapego. As imagens ficam abertas e em seguida desaparecem, como se não houvesse necessidade de compreendê-las. Abre palco para vaguezas sentimentais ("regência de uma alma", "escombros de teu tesouro, saudades" e "mar de grãos") e despersonaliza sua escrita com adjetivos ("indecifrável alegria", "antigos rancores", "erros formidáveis"). O adjetivo corresponde a uma forma de comunicar e não se comprometer.

Depara-se com um dilema entre glorificar o instante, próprio da poesia religiosa de Péguy, de Coleridge, de Lowell, de Hopkins, ou de resumir a ação e, assim, apressar o interesse. Quando glorifica o instante e fecha uma imagem, tem-se a beleza discreta e o ânimo de seus melhores versos:

"Encontrar a chave anos mais tarde/ Quando a passagem já está perdida;/ Descobrir uma carta selada,/ Quando a palavra secou na raiz."

Ou: "Porque cada coisa, para ser,/ Em seu todo se divide. /As fases da lua, a pele da orquídea,/ As cores com que se faz o branco."

Ou: "Talvez a roda de bicicleta/ Envelheça o menino."

E: "Antes que tenhas partido, já te espero./ No cheiro do carvalho e das cerejas./ Sei por onde vais e com que sede."

Em todos os quatro casos acima, identifica-se a imanência emocional a partir de um elemento. Existe algo para olhar e se debruçar, algo para tocar e permanecer: a chave ou a carta, a orquídea e a roda de bicicleta, o carvalho e as cerejas. A poesia deixa o narcisismo do discurso geral, a transcendência dominante, para cultivar aparições e desvendar relações metafísicas com o visível. Não mais sair e sair, mas entrar e sair. Reparar que a roda da bicicleta talvez envelheça o menino é uma preciosidade imagética.

No entanto, Mariana Ianelli tem intrepidez de sobra, em admirável composição lírica-elegíaca próxima da filosofia e vizinha do versículo. No canto De Agno, ela exercita o novelo exemplar de complementação de idéias e sensações, este, sim, com paciência no desdobramento da história. Narra o entusiasmo do sexo como se fosse um sacrifício e interpõe alusões bíblicas do campo a determinar a oferta:

"Eu, placidez de cabra, perdão de joelhos./ Dentre os animais, um sim que pranteia./ Eu, estado de graça, salvar e adoecer."

Talvez Almadéna valorize a delícia dos ouvidos e ressente-se justamente da ausência de um cuidado visual, de voltar para encerrar o impulso inicial do pensamento. Ocorre uma "vontade de nuvem", de cobrir e logo se afastar. O andamento perde em densidade à medida que as metáforas são maiores do que seu conteúdo aforístico. Soam afetivamente arbitrárias porque não se interpenetram. Num barroquismo manso, a poeta solta mais comparações do que a possibilidade narrativa de contê-las e significá-las. O deslocamento rápido de um plano íntimo para outro geral anula a concentração. A gula por abarcar distâncias interrompe a credulidade. E para amar a poesia de Mariana Ianelli, pede-se a crença irrestrita.

ESTADO DE S.PAULO, Caderno 2/Cultura, p. 5

Sobre o Autor

Fabrício Carpinejar: Fabrício Carpinejar, 34 anos, nasceu em Caxias do Sul (RS). Filho dos poetas Carlos Nejar e Maria Carpi, hoje separados, juntou seus sobrenomes em sua estréia poética, As Solas do Sol (1998). A partir de 2000, foram outros três livros anuais de poemas: Um Terno de Pássaros ao Sul, Terceira Sede e Biografia de uma árvore – até a antologia Caixa de sapatos (2003), que lhe conferiu notoriedade nacional, pela editora Companhia das Letras.

Desde 2004, é editado pela Bertrand Brasil por onde lançou Cinco Marias (poemas), Como no céu/ Livro de Visitas (2005, poemas e prosa poética) e O Amor Esquece de Começar (2006, crônicas) – sendo este último uma compilação de textos a partir do seu blog na internet. Mantém ainda a coluna semanal Consultório Poético, no site da revista Superinteressante. Foi laureado pela Academia Brasileira de Letras (prêmio Olavo Bilac, 2003), pela União Brasileira dos Escritores (Cecília Meireles, 2002) e recebeu o Açorianos de Literatura já duas vezes, em 2001 e 2002.

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