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Rua da Alfândega
por T.M. Castro
*
publicado em 20/07/2007.
Rua da Alfândega. Toda capital à beira-mar tem a sua. O pequeno comércio expulsa os grandes armazéns, a alfândega também se muda para local mais propício, mas a rua nunca deixa de ser da Alfândega. Há nelas um inexplicável cheiro de mar e um identificável, posto que quase imperceptível, cheiro de peixe passado, meio estragado. Seus esgotos sofrem de perpétua e idêntica halitose que não chega a por o interlocutor à distância, mas não o incentiva a uma longa conversa. Vendedores de frutas, de caranguejos, de camarão, fumo, flores, especiarias, bolsas de todo gênero. Ali tudo se acha.
Sousa e eu acompanhávamos cada qual o respectivo avô quando iam eles buscar, na boca do caixa, os vencimentos de funcionários do Estado, na secretaria da fazenda, em nossa cidade, em uma esquina da rua da Alfândega. O Tesouro. Era assim conhecida a repartição.
Compensavam-nos os velhinhos com pedaços de bom-bocado vendidos pelo Nego Tonho, uma banca bem na esquina, à beira da calçada, na coxia que dava fluxo a uma vertente de água mal cheirosa. Negão Tonho também já se foi, junto com nossos avós, junto com a alfândega e com o Tesouro.
Como que por incrível insistência da dita, dos fados, nada que se fixou no prédio da alfândega vingou. O mesmo se diga daquele do Tesouro. A biblioteca daquele não atraiu os leitores; a pinacoteca neste, vero palacete com escadarias de mármore, belle époque, também não guardou os quadros por muito tempo.
Falando em belle époque, lembrei-me da barbearia Silva. Aproveitaria para cortar o cabelo. Ainda com seus ábacos de pés de ferro, tampos de mármore, cubas de prata para as espumas, espelhos decorados, originais, navalhas alemãs, era agora a barbearia gerida pelo neto do Silva. A placa velha dizia "Barbearia Silva", nada de" estilista" ou "cabeleireiro". Barbeiro, coisa de homem,dá mais confiança. Decidi aproveitar a manhã para isso e devo ter mudado a expressão facial, de regra fria, apática, ática mesmo, pois o Silva me interpelou, "Que houve, viu alguma coisa que me passou?". Não, nada, desconversei.
Interrompeu-nos as lamúrias o 27, coletivo que ligava a praia de Iracema à Praça do Ferreira. Perdemos esse, mas não estávamos com pressa, concordamos. Tomaríamos um táxi ao centro, pois nossos ternos de linho não correriam o risco de se mancharem de graxa, ou com respingos da cesta de camarão; o vendedor houvera tomado o coletivo. Encerrou a ironia com uma risadinha trepidante, pois na realidade eram os antigos que usavam linho à época que lêinsistia desfilar a nossos olhos.
Pois é, nada muda, dizia o Sousa entre os largos sorrisos e as mesmas tapinhas nas costas. Mais um pouco e a alfândega volta para o mesmo lugar e o Tesouro idem, isso vai ser bom, muito bom, de mais a mais, brasileiro não vai se mover atrás de biblioteca e muito menos de quadro de arte. Antes nosso conforto; correr mais caminho em busca dos risíveis cobres, como ora acontece! Que volte o Tesouro.
Chamou-nos a atenção o fato de um sujeito morenão, bigodes bastos, morenão escuro, negro, cabelos encarapinhados, assentar uma banca com os tais bolos e doces. Seria o Nego Tonho. "Cidadão era ele meu avô. Com muita honra. De pé o negócio da família. Vai um?" É, vai sim. Comemos um e demos um ou mais pedaços para nossos acompanhantes.
Nada mudara, dizia o Sousa. Dava uma vontade de querer acreditar nisso. Penso que, para o Ser que lida com a Eternidade, o quartel de Abrantes estava como dantes. No entanto, para os que nos situamos na esfera do menor, do gatuno e ligeirinho Tempo, o "nada mudou" era mais que um ato de boa vontade, era mesmo uma alucinação.
Bem, o tempo aqui não passa, nada muda, não é mesmo, observava o Sousa, entre indagativo e admirado. Mas, confessava não sentir o mesmo sabor no desafio ao diabetes, que era o que realmente significava agora o comermos o tal bom-bocado. Também os característicos odores parecia não existirem tão fortes.
Envelheceram as papilas gustativas e as narinas, pensei cá comigo. Devem estar no bonde que ao tempo nos conduzia a mil lugares da cidade. O 27, não se deu conta o Sousa, é coisa já tida como novidade. Os velhinhos já não no alcançaram. Quiçá ainda vivos quando o ônibus começou a rodar, não garanto. Sei de certeza plena que jamais puseram os pés no alucinado transporte. Ou bonde ou o solado dos sapatos. Serviram-se do coletivo 27 nossos velhos, não os velhinhos. É que na caminhada pela Rua da Alfândega os velhos sucederam aos velhinhos, e, de igual modo, nós os acompanhávamos ao mesmo Tesouro, pois também marcaram passo no funcionalismo estadual. Algo interiormente me deu um puxão: os antigos já não mais estavam em mim, a cabeça da fila, assim como no Sousa, na família dele.
Falando em sapatos, lancei os olhos nos calçados de nossas crianças. Emborrachados, brancos, listras azuis a acenderem uma luzinha no calcanhar à medida que pisam. São nossos eletronetos.
Ao meio à repetida toada do "nada mudou" do Sousa, observei que não permanecíamos no linho, a exemplo dos velhos e dos velhinhos. Grossas calças de índigo tomaram o lugar dos frágeis panos irlandeses, muito esgarçáveis. Nossas camisas mescladas com sintético não amarrotam com o uso e são impermeáveis ao suor, o que nos garante uma aparência de limpeza e elegância.
Certas coisas são indiferentes ao tempo e mostrava-me Sousa o relógio que encimava a imensa porta central do ex-prédio da alfândega, sempre e ainda sem funcionar. Não mudam, nunca consertaram, observava e ria.
Ligava-se o Sousa aos símbolos do passado, de sua infância, com um olhar imóvel, ou talvez olhasse para dentro de sua mente sugestionado pela atual paisagem, apenas sugestionado, como se as atuais imagens fossem fictícias, apenas um mote para recordações. Nelas estariam as reais imagens.
Desejar o eterno permanecer, riscar do mapa dos fenômenos as naturais mudanças é, de certa forma, entregar-se ao mais pueril dos afetos, o sentimental transporte ao que foi. Isso é coisa de poeta, de gente desocupada e sem garra. Viver ainda que jocosamente o passado era um artifício de defesa do Sousa. No fundo, ele era de fato um estagnado, não um homem de seu tempo.
Mais realista, vejo os calçados emborrachados (os atualíssimos tennis shoes), o prático relógio a pilha, o impostergável celular ao bolsinho da calça jeans como inexoráveis adaptações aos tempos, sobretudo o transitar em mangas de camisa. Isso é o tempo em valente marcha, faz parte da mudança, tudo mudou, tudo muda. Servem as tenras mãozinhas que empolgam as nossas de lembrete do andar da carruagem, são uma prova do que vem, não do que foi.
Já os sentimentais assumidos, mais francos que o hesitante Sousa, deliram - comme un réve - que, como por mágica do momento, têm, por um átimo de segundo, a sensação de trajar suspensórios, calças ao joelho, meias altas, sapatos bicolores, e de apertar uma mão velha e enrugada, querida e suave á conduzi-los pela Rua da Alfândega. Em delírio têm como suas as mãozinhas que apertam. Vai ver que são, arrematam. Insanamente trazem ao presente o que de há muito já foi.
Respiro fundo e recomponho-me. Pés no chão, meu rapaz, advirto-me em introspecção, à puridade. Despeço-me do Sousa, abruptamente:- "Até mais ver, Sousa, tenho de chegar, o infante aqui adora passear na Rua da Alfândega". "É isso aí, temos que regar as plantinhas, é o futuro", diz ele, ainda a rir e puxando seu infante. Já não respondo e parto asinha em busca da Barbearia Silva, pertinho dali, na Rua da Alfândega.
Sobre o Autor
T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br
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