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Santo de casa faz milagre
por Noga Lubicz Sklar
*
publicado em 09/07/2007.
Se me derem uma palavra para descrever o tema dominante em meu trabalho, usarei: família.
Se me derem duas, família infeliz.
Amós Oz na FLIP 2007
Se me derem duas, família infeliz.
Amós Oz na FLIP 2007
Todos os dias de manhã, às seis da manhã, Amós Oz amansa o ego no Neguev. O escritor mora a cinco minutos de caminhada do deserto, e afirma não haver nada melhor que a vastidão da areia pra lhe ensinar cotidianamente a humildade. De volta em casa ele liga o rádio e ouve, no noticiário, o costumeiro bando de políticos com suas grandes palavras: "nunca"; "sempre"; "até o fim dos tempos"; mas só escuta o riso irônico das pedras do deserto, comentando a pretensão pomposa deles. O que não quero, não vou contar pra vocês de jeito nenhum, é que Amós Oz manca de uma perna (1), e é mancando que um dos grandes escritores do nosso tempo adentra o palco da FLIP para dividi-lo com a sul-africana Nadine Gordimer, minha primeira vez frente a uma Nobel, nossa. Uma emoção como poucas.
Nadine começa a ler um trecho de seu último livro com voz firme, expressiva: faço questão de ouvi-la no original, mesmo que por causa disso acabe perdendo umas poucas palavras. Tudo nela transpira literatura: a voz pausada, os óculos, a longa echarpe vermelha sobre o traje azul escuro, os cabelos grisalhos num coque de vovó, os olhos miúdos mas muito vivos na face enrugada, as mãos manchadas com os dedos deformados pela artrite. Se eu viver bastante, se Deus me conceder a graça de uma vida longa, quero ficar como ela, sem botox nem silicone, embora nem de longe possa expressar com essa calma toda uma vida inteira de coragem heróica, em favor da simples decência humana.
Depois de Nadine é a vez de Oz, que lê um trecho em hebraico, pura música para meus ouvidos, ah, a língua pátria, não há nada nesta vida que soe tão melodioso. Vou quase às lágrimas, mas gente, o que é que ele está lendo? Uma ladainha sobre a compra de queijo branco na Palestina de 1946, dois anos antes da criação do Estado de Israel. Tudo naquele tempo, para o bom judeu, era uma questão de patriotismo e reflexão, e ainda é. Em defesa da integridade nacional, estavam todos proibidos (melhor dizendo, desaconselhados: em Israel nada é proibido, embora todos se achem no direito de controlar a sua vida íntima) de comprar qualquer produto estrangeiro, mas se você fosse à quitanda da esquina, encontrava duas opções de gvinah levanah: a pasteurizada, fabricada pela Tnuvah, e o queijo branco árabe, mais salgado e um pouco mais barato. Se você decidisse virar as costas à Tnuvah (gente, esta fábrica de queijo é eterna: existe até hoje, graças ao pioneiro esforço patriótico dos sabras), estaria negando a comunidade que se estrepava diariamente para garantir a nossa sobrevivência. No entanto, se desprezasse o queijo árabe, estaria condenando os vizinhos à pobreza e dando motivo para qualquer ódio que pudessem sentir, e isso pra não falar dos germes. O queijo branco judeu a gente tinha certeza que era limpo, já o árabe... mas, no fim das contas, o queijo árabe era mais saboroso... e um pouquinho mais barato. Acabávamos quase sempre optando pelo árabe, relata Oz, caramba: não é nada fácil ser judeu.
A conversa prossegue entre os dois veteranos: o meu velho tio, e aquela senhora charmosa e sábia, quem dera fossem assim os idosos da minha família. Nadine provoca Oz com uma intimidade de amante, mas titio - vocês sabem, aquele escritor famoso transformado em celebridade ali, no palco da FLIP -, parece conduzir suas respostas (chutzpah*, Noga) para um roteiro previamente decidido - sempre brilhante, não me entendam mal, com um toque temático de gênio. Me pego sentindo aquele vago desprezo pelo outro que costuma rolar nos saraus lá de casa, afinal, em Israel, somos todos parentes, o próprio Oz confirma isso ao descrever o conflito do Oriente Médio como uma casa compartilhada entre duas famílias que não se dão nada bem: é preciso, com urgência, dividi-la em dois apartamentos.
O embate amoroso dos dois continua, Amós provocando o riso da platéia com mais uma de suas ótimas tiradas: "se pudesse escolher entre ser um astronauta e ir a Marte, ou ser uma mosca pousada na parede durante um jantar em família, eu certamente optaria pela mosca. A vida em família me fascina." Nadine rebate, sim, ela concorda, o escritor é mesmo essa mosca, com olhos e narizes enormes farejando tudo, mas acaba se transformando numa mosca na minha sopa, ao condenar veementemente as autobiografias: todos têm direito à vida privada, e não vou sair por aí pedindo permissão pra citar todas as pessoas com as quais convivi, ai meu Deus, e agora? A minha confissão já nas bancas? O que eu não conto nem sob tortura é que, minutos antes do debate começar, encontrei Amós no bar do hotel, repassando com a esposa as respostas que daria mais tarde. Foi sem querer, gente, eu juro, essa coisa de mosca na parede nunca deu certo, eu os vejo ali naquele momento íntimo, constrangedor demais para um fã, e ela parece me fuzilar com os olhos: sai daqui, sua intrometida, reconhecendo em mim a sabra metida que os tinha abordado, um dia antes, no corredor ao lado da piscina: may I take your picture?
Pra encurtar o papo, que essa crônica já está virando novela: cheguei a Parati com a incumbência de entrevistar o Amós para o Verdes Trigos, mas a entrevista, tsk tsk: morreu na foto aí de cima. Nosso herói não foi nada simpático, e agora sim, entendi tudo: apesar de gênio, o grande Amós Oz não é do tipo espontâneo, e daí? Cada um é do jeito que é, e pra não deixar a pauta do Verdes Trigos completamente em branco - certo, gente, falhei miseravelmente como repórter - pelo menos a uma pergunta da lista o Amós respondeu, Nadine cobrando dele um livro sobre a vida no exército. Um conformado Oz diz que tentou, muitas vezes, escrever sobre isso... mas jamais se aproximou das sensações absurdas - absurdamente distantes do cotidiano humano comum - de um soldado no campo de batalha. Nadine insiste, é sua obrigação, ela diz, e Amós promete continuar tentando. Pra não dizer que não falou de flores, encerra a mesa com um caso de guerra, nada aterrorizante, prefacia ele, acalmando a platéia:
- Quando me vi pela primeira vez no front com os meus soldados, os egípcios atirando contra nós, fiquei tão desconcertado, que a minha primeira reação não foi de medo, não foi atirar de volta, nem fugir, nem me proteger dos tiros. Eu quis chamar a polícia!
Com vocês, o grande vencedor do prêmio Príncipe de Astúrias de 2007: meu conterrâneo, parente e chaver** Amós Oz.
Glossário hebraico:
* chutzpah - algo intraduzível, tipo assim: como ousas? ou: sacanagem! ou ainda, segundo a wiki: afronta pura
** chaver - camarada, companheiro, chapa, sim, no sentido mais socialista possível da palavra
(1) - dizem línguas melhores que a minha que Amós Oz machucou o pé dançando com a esposa na FLIP. Duvido. Nenhum dos dois tem cara de festeiro, enfim, mancando ou não, o cara é grande.
Sobre o Autor
Noga Lubicz Sklar: Noga Lubicz Sklar é escritora. Graduou-se como arquiteta e foi designer de jóias, móveis e objetos; desde 2004 se dedica exclusivamente à literatura. Hierosgamos - Diário de uma Sedução, lançado na FLIP 2007 pela Giz Editorial, é seu segundo livro publicado e seu primeiro romance. Tem vários artigos publicados nas áreas de culinária e comportamento. Atualmente Noga se dedica à crônica do cotidiano escrevendo diariamente em seu blog.Para falar com Noga senda-lhe um e-mail ou add-lha no orkut.
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