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A menina e os fantasmas do pai: "O labirinto do fauno" é grande cinema
por Chico Lopes
*
publicado em 01/06/2007.

"O labirinto do fauno" é, por incrível que pareça, dirigido por um cineasta que, na América, já fez coisas como "Blade II" e "Mutação", embora tenha feito também uma criativa e elogiável transposição de gibi em "Hellboy". E tenha feito, antes disso, na Espanha, um filme de suspense e sobrenatural admirável, "A espinha do Diabo", também tendo como cenário a Guerra Civil espanhola. A impressão que se tem é que o mexicano Del Toro se dá melhor é filmando na Espanha, pátria com a qual a sua tem uma filiação óbvia, tal como Penélope Cruz, quando volta para a Espanha, tem suas melhores interpretações, nos filmes de Almodóvar. Certas aclimatações de atores e cineastas europeus ou latino-americanos na América seguem sendo problemáticas.

Mas, saberemos, desde o início desse filme admirável, que a história que se contará é a dela - desde a primeira imagem, quando é mostrada em agonia, sob azulada luz lunar, e se narra a fábula de uma certa princesa que foi destruída pela luz solar ao sair do seu reino noturno e subterrâneo, estamos nos passos de Ofélia. E ela faz um gesto inaugural perfeito, devolvendo a uma certa estátua um pedaço que lhe faltava, deparando-se com uma espécie de libélula gigante que passará a segui-la. Entramos, portanto, num filme que, na verdade, mantém duas realidades em paralelo: a fantástica, da fábula da princesa, e a histórica, que é na verdade um daqueles pesadelos políticos que constituem o que se pode chamar de "mundo cruel". Não que a realidade fantasiosa não tenha boas doses de crueldade, mas é, sem dúvida, mais tolerável que o franquismo e seus demônios - à frente deles, disparado, o odiento e absurdamente machista Cap. Vidal.
Planos que se interpenetram: a princesa da noite e o pai usurpador
"O labirinto do fauno", que tem relação direta com "A espinha do Diabo", de Del Toro, em certos momentos, por sua concepção, lembrou-me o excelente "O beijo da mulher-aranha", do brasileiro Hector Babenco. Há algo em comum entre essa menina sensível, que se refugia numa fantasia delirante para fugir do franquismo, e o homossexual Molina que, na sua cela de prisão, fantasia filmes, que conta a um outro prisioneiro. Aí, a estratégia é filmar em dois planos, que se distanciam e, em dados momentos - realmente mágicos e gratificantes, para o espectador - se encontram, revelando os fios que costuram um mundo a outro. Munida de um giz, Ofélia riscará na parede passagens para o mundo de fantasia - um gesto que Molina poderia ter feito, para abolir aquelas grades.
Em redor de Ofélia, só há grades: nada é pior do aquele padrasto, um vilão vivido magnificamente por Sergi Lopez (que esteve ótimo também como vilão em "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears: era o gerente daquele hotel londrino). Sua mãe está tendo uma gravidez problemática, e tudo que importa a ele não é o sofrimento da mulher, mas que seu varão nasça - diz ao médico que, se tiver que escolher, é a sua esposa que deve morrer: é, como todo machão megalomaníaco, um narcisista em primeiro grau - só faz sentido ter um filho homem, para dar sucessão ao pai militar machão de que descende, e de quem carrega um relógio que assinala seu pacto com o Tempo, a Morte e a sucessão masculina. Sujeito mais egoísta e unilateral, impossível. E, servido pelo charme de Lopez, é mais perigoso ainda.
Saberemos que tudo é mesmo fantasia, com certeza, quando, em belíssima cena, Ofélia faz com que a libélula gigante que a segue se transforme numa fada, mostrando ao inseto o que é uma, num dos livros de fábulas que traz consigo. Mais à frente, numa outra cena magnífica, ao falar com o futuro irmãozinho na barriga da mãe, vemos o feto, vemos os espinhos que ela vai descrevendo e, saindo desse emaranhado, a libélula. Seguiremos, então, para o mundo está o Fauno, um achado em termos visuais, um bode-Pã-árvore, que tremula e orneja, que é a um só tempo, ameaça, persuasão, lascívia e delicadeza. Pensei, por alguma razão, em algum dos desenhos eróticos de Picasso. Essa figura mitológica depende, na verdade, de Ofélia - é todo um reino de sonho que ficou ameaçado assim que a princesa fugiu dos subterrâneos para a destruidora luz solar. Ela terá que passar por três provas para reconstituir aquele mundo e recuperar seu trono.

Ofélia, que em sua identidade mágica é a princesa, é uma criatura lunar, está bem no escuro, e a fotografia é esplêndida, pois a vemos à vontade entre sombras, escuros e azulados, enquanto que, sob a luz crua do sol, tudo que acontece é pavoroso ou ameaçador. Ela pertence à Noite, realmente.
Enquanto o Cap. Vidal reina sobre um mundo diurno, implacável. O franquismo, na verdade, é vencedor desde o início. Ofélia, como os rebeldes que se escondem na floresta, vive no reino da clandestinidade. E o final, que é surpreendente e adulto, nos faz oscilar na corda bamba entre realidade e fantasia, jamais deixando claro quem seria um vencedor óbvio.
Esse filme extraordinário deve estar inspirando alguma aversão num público que se acostumou, nesse tipo de produção, a um certo sentimentalismo e a concessões bobinhas. Porque carrega tragédia, poesia e política em doses elevadas para esse público, acostumado a produções do tipo "Crônicas de Nárnia". O franquismo, encarnado pelo capitão, não tem sutilezas: é pavoroso e pronto. Mas, ao fim, acharemos que ele, o capitão, é também vítima de um condicionamento histórico infeliz, de certo modo.
Ao fim, na verdade, descobriremos que Del Toro é um cineasta de primeira e que fez um grande filme, que chega a parecer obra-prima, em certos momentos. Nessa jornada de poesia, nesse caldeirão em que cozinha a narrativa, entrou de tudo: Lorca, Picasso, Borges, Jung, Eliade, e até uma boa dose do "Iluminado", de Stanley Kubrick, na cena em que Vidal, morrendo, persegue a filha desesperada no labirinto. E entrou sobretudo esse rostinho extraordinário da atriz Ivana Baquero, perfeita no papel. E uma dose de coragem e arte muito acima do cinema comercial da atualidade. Graças aos deuses!
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Francisco Carlos Lopes
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