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Ladrões de Fogo
por Joca Wolff
*
publicado em 18/08/2003.
A velha idéia da vanguarda na cultura pode ser vista hoje enquanto uma miragem de um passado militarista na medida em que significa, originalmente, militar, estar à frente da tropa do mal, mergulhar no pesadelo, descer aos abismos, introjetar a catástrofe da modernidade. De outra parte, uma das fontes etimológicas dessa velha palavra, surgida no século XV segundo o Houaiss, é Wardon: proteger, guardar (em alemão antigo). Pois a vanguarda, como todo mundo sabe, se institucionalizou em definitivo a partir do momento em que o moderno foi parar – ou se proteger, se guardar – no museu: o sonho acabou (ele sempre acaba) e o moderno já não era nem efêmero nem eterno. Como conseqüência deste corte, o moderno passa a viver outros avatares desde digamos a Segunda Guerra Mundial e estes já são os estilhaços do moderno, aquilo que se fragmentou e continuou se fragmentando numa tarefa infinita que coube ao limiar dos nossos séculos vinte encarar.
Como encará-la, sendo a tarefa sabidamente impossível porque interminável? O abismo se torna horizontal com o mergulho warholiano na cultura de massas e o achatamento da reprodução em série se torna a melhor representação da nova e dura superfície do real: palimpsestos maquínicos agitados aos quatro mil ventos via satélite nas vozes do rádio (nos sulcos do disco) ou nas imagens do vídeo (no rastro do devedê). No Brasil, esta nova face indefinível da cultura se revela nos diferentes tempos, a partir dos 60, através de registros multicoloridos, em retratos verbivocovisuais, que podem levar o nome de Tropicália aqui, de Lira Paulistana acolá, e de sabe lá o que mais em meio aos escolhos das vazantes neoconcretas. Revelador, de qualquer forma, é que uma, a tropicalista, tenha escolhido parar neste outro museu que é o ministério, e que a outra tenha simples e literalmente se desorbitado: os restos da Lira saíram da órbita, sem obviamente deixar de dialogar com o alto e o baixo na nossa cultura pós-moderna.
À margem – ou seja, dentro e fora – deste círculo infernal, que marca a fogo nosso capitalismo tardo-periférico, ainda há, no entanto, gente disposta a roubá-lo por meio da hibridação dos meios característica da era digital. É o caso de projetos como o “Ladrão de fogo”, de Ricardo Corona, autor de um livro que se incendiou, virou cedê e agora cumpre a ameaça de virar uma série através dos próximos lançamentos da editora Medusa, do Paraná, abordados a seguir. Mas, entre uma envelhecida tropicália e o hoje do hoje, houve o novo de novo, na ótica avessa (na veia perversa) dos melhores antilirismos paulistanos, em boa parte paranaenses, representados aqui, logo adiante, pela figura ímpar de Itamar Assumpção (1950-2003).
CINEMAGINÁRIO EM CEDÊ
Poesia sonora de Ricardo Corona flerta afirmativamente com a cibercultura
O Ladrão de Fogo cravou um disco como não se ouvia desde pelo menos mil e novecentos e oitenta e quatro, justo quando entrava aqui a tecnologia digital e quando a música da literatura, simbolizada no cedê (menor que o vinil), se tornava menor nos termos de Deleuze e Guattari, quer dizer, se valorizava pelo avesso com os revolucionários vinis “Clara Crocodilo” e “Beleléu leléu eu”, ambos de mil novecentos e oitenta (ver adiante artigo sobre Itamar Assumpção). O Ladrão de Fogo é um deusconhecido da cidade de Curitiba, Ricardo Corona chamado – autor de Cinemaginário (SP: Iluminuras, 1999) e organizador da coletânea Outras praias – 13 poetas brasileiros emergentes / Other shores – 13 emerging brazilian poets para a mesma editora – cujo primeiro disco, ponta-de-lança da coleção “Poesia para ouvir”, gravado entre 2000 e 2001 para a Medusa edições, termina com esse mesmo neologismo capetino: deusconhecido.
Teremos ouvido direito? Eis uma pergunta que merece atenção. Mas aqui, para além das vendas e dos ouvidos, o certo é que a matéria pop do presente e do futuro – tomando-a como uma sorte de “mundialização da internacionalização” da cultura – vai ter cada vez maiores e simultâneas doses do puro e do impuro, do culto e do inculto, quer dizer o melting pot será cada vez mais profundo, e isto já vem rolando conforme se sabe faz décadas, sem fronteiras. O que não modifica a condição que cada vez mais deve ser assumida pela recepção crítica das obras deste e de outros gêneros, na qual não é tanto o crítico a ler a obra, mas sobretudo a obra a lê-lo.
Então, “Ladrão de Fogo”, um livro como não líamos desde talvez oitenta e cinco, vomita o que desde os anos vinte não apenas se canibaliza nos trópicos, mas se afirma que se canibaliza: das liras paulistanas dodecafonizadas pelos Barnabé, Paulo ou Arrigo, patifes e bandidos, das macumbas de orientes aos Araçás Azuis travestidos de Claras Crocodilos e aos Gigantes Negões performatados pelo Nego Dito, digo, lá nos idos daqueles idos. “O que nos une é a unidade”: há uma escancarada unidade no cedê-livro – e é também nesse sentido que o comparo à Clara e ao Beleléu, esses precursores do ladrão. A eles, os vinte e três poemas de fogo.
Após o choque de consoantes famosas na “Avalanche” – a vinheta de introdução com quatro ícones do século XX: Stein (Gertrude), Einstein (Albert), Eisenstein (Sergei) e Stones (Rolling), que já é todo um programa – e depois da exposição da face beat de “Pessoa ruim”, em que drácula ri, lobos uivam, as guitarras são frippianas e o poeta escreve “pra não ser chamado de poeta”, enfim “Nascem flores com o tempo”,* na voz da produtora Grace Torres, que toca leves teclados, apontando para a discussão proposta pelo Ladrão: não musicar poemas para valorizar a canção que toca no rádio, mas o caminho inverso, fazer ressoar a música do poema falado, e a parafernália high-tech deve servir a esse propósito, embora não exclusivamente, porque também há canções de tocar no rádio, e o principal exemplo é o fado “Miss Tempestade” por Vitor Ramil – assim como “Nascem flores com o tempo”. “Ladrão de fogo” é, portanto, um livro falado e musicado que não se limita à declamação, como na maioria dos registros existentes, em que poetas declamam mais ou menos burocraticamente. É nesse limiar que a coleção “Poesia para ouvir” trabalha, abrindo alas, quer dizer, páginas, convidando o poema a deixar a biblioteca para flanar por campos, cidades e redes afora.
Mas flanar, neste caso, também significa fustigar a academia e os especialistas ao mesmo tempo, para flertar afirmativamente com a cibercultura de massas, segundo Corona: “Sempre achei que a poesia sonora, com os novos programas de computador que possibilitam o registro com mais facilidade (em termos financeiros), pode ganhar um espaço próprio que não a transforme em letra de música. Nada contra. Mas tudo a favor de um espaço próprio. Para mim significa desenjaular a poesia dos especialistas literatos e promover um encontro xamânico com o leitor”. Este encontro pode ser “Via láctea via língua”,* nova balada com Grace Torres em dobradinha afinada com o viés “simbolista” da poesia de Corona, que fala o poema justamente denominado “Simbolista”, “num blues e sousa contra o vento”, lembrando o poeta do Desterro segundo Paulo Leminski. Em seguida, após o intermezzo grave de ”Quando te insurgires dos refletores da razão”,* surge um trecho de “Antífona”, o primeiro poema de Broquéis (1893), cujo autor foi um mestre de mestres na arte de crispar sons e sentidos e cujo xamanismo consiste na explosão da “chama ideal de todos os mistérios” – a exemplo do Ladrão de Fogo, mais de século depois.
“Miss Tempestade”* se oferece saturnina, entre o divã e o lupanar, com Vitor Ramil (e violão, e violino, e harmonium) a lhe dizer, quase imperar: “Escreva, Miss Tempestade / Não contemporize a sua intensidade”. Esta faísca revela então toda a sua vertente oriental com “Narayama”* e “Música” (ao som de instrumentos indianos executados por Angelo Esmanhotto), e depois de outros poemas de Cinemaginário – “Na margem de todas as coisas: uma canção” e “Rua Basquiat” – há um tango em “Paisagem narcisista”* (com o achado de “Eu, de passagem e a paisagem, de paisagem”) e um rap em “Copyright by”, espécie de repente dedicado à cidade virtual, fazendo atritar outra vez o puro e o impuro, em série de experiências com a diversidade dos gêneros populares. É que “A lua finge mas já reflete sóis”* (voz de Neuza Pinheiro e baixos de Ulisses Galetto) para que frutifique a “Vitalização”, novamente nos etéreos termos do Missal de João da Cruz e Sousa: “a Natureza é como uma grande força animada e palpitante dando entendimento e sentimento à Matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da Morte”. Tudo isto para “ter a alma durando no tempo”* e não ser mais que um “Deusconhecido”.
Como todo cedê bem cuidado, este contém um belo encarte, que termina com uma citação do ladrão dos ladrões, Jean Genet e com um post scriptum à citação que é outro inteiro programa: “Ladrão de (apropriação da referência) fogo (vitalização da referência em outro contexto). Do universo ao multiverso. Da invasão de propriedades artísticas, culturais e intelectuais à contaminação de formas, conceitos, conteúdos. Da combustão (roubada) de Eliana Borges pela síntese poético-visual no encontro de língua e labareda; Jardelina da Silva [artista da vida paranaense, lançada na primeira dentição da revista Medusa] pela oralidade desliteralizada; Cruz e Sousa pelo verso-ambiente e polifônico; Grace Torres e Vitor Ramil pelas (de)composições de fado e tango sobre poemas que decalcam a paisagem tropical; Ferréz pela poesia política do rap brasileiro aos que indiretamente botaram fogo no ladrão: Paulo Barnabé, Fernando Pessoa, Lobão, Leminski, Jean Michel Basquiat, Gertrude Stein, Matsuó Bashô, Pasolini, Cummings, Einstein, Foucault, Duchamp, Po-Change, William Blake, Baudelaire, Jean Genet, Tom Zé, Georg Trakl, Shohei Imamura, John Cage, Wim Wenders, Eisenstein, Tarkovski, Laforgue, Leopardi, Augusto de Campos, Lautréamont, Andy Warhol e Walt Whitman”. E, como se não bastasse – noutra possibilidade de leitura – o ladrão está – o ladrão é, o ladrão vive – de fogo.
(Nota: Os poemas com asterisco pertencem ao livro Cinemaginário.)
O personagem desta crônica – pioneiro da marginália e da abordagem do seu universo na maior cidade grande do Brasil – exige antes de mais nada uma estratégia de risco e, diante disso, não hesito em arriscar uma visão pessoal e certamente idealizada dele, que no entanto pode servir como elemento de confronto com sua imagem, suas imagens, em Sampa (de noite, midnight, como num dos primeiros discos) ou noutras partes do Brasil. Avanço também que, apesar de ter tentado, nunca assisti a uma apresentação ao vivo do Gigante Negão. No entanto, investi muitas e boas jovens horas decorando os poemas do primeiro disco, o anticlássico “Beleléu leléu eu”(1980). E dos outros por vir.
Pois Itamar Assumpção morreu esses dias, na cinqüentena, como Tim Maia, seu radicalmente outro carioca – ou será Jards Macalé? Mas quem diz Itamar Assumpção, também diz, evidentemente, Arrigo Barnabé. É dele um alô de conhecedor inteligente, mas já nostálgico, em necrológio da Folha de S. Paulo (14 de junho): “Itamar foi uma pessoa tão desperdiçada... Mais tarde isso ficará evidente. A partir dos anos 80, foi o grande autor de canções. Fazia música popular enquanto arte, no sentido do Cartola. Poderia compará-lo, por oposição, ao Jorge Ben. A música dos dois é comunicativa, mas o Jorge é alegre, do dia, e Itamar teve marcas na vida e era mais amargo, da noite”. O que choca aqui é o tom de s.o.s., que talvez seja o do próprio Arrigo, companheiro de geração e de escolhas estéticas, criador de “Clara Crocodilo”, da mesmíssima época e igualmente tão desperdiçado, diria-se, seguindo seu raciocínio.
Vejamos o que diria, então, um artista “não desperdiçado”, um “recuperado” como Tom Zé: “Pena que não tenha desfrutado da beleza que seu espírito inquieto e criativo pôs no mundo”. É certo que as necrológicas são sempre e necessariamente necrofílicas, mas arrisco dizer, apesar de não tê-lo conhecido de perto, ele desfrutou, e muito. É isso ao menos o que as músicas dizem. É isso o que parte boa da Alemanha diz. Quem ouviu seu último disco, “Preto Brás” (1998), sabe que a audiência alemã de Itamar Assumpção está ali, que a língua alemã está ali. Como?, um Gigante Negão falando deutsch? E por que não? O suinge dele nessa língua soa charmoso e provocativo demais, fazendo a língua estalar, vale dizer, ficar mulata, mulatizar-se. Essas coisas todas ele não pode ter deixado de desfrutar bem: estão ali, nas gravações, nas músicas, umas mais populares, outras mais impopulares, mas sempre popularíssimas, mesmo que às vezes estranhas ao gosto mais popular...
Na primeira canção de “Preto Brás”, diz no refrão, diagnosticando miséria sem dar trégua: “Cultura tanto bate até que fura / Que pop mais pobre pobre pop”... No primeiro verso, a autobiografia inteira do Beleléu; na segunda, sua declaração de princípios, corroborada na canção seguinte, dele e de Alice Ruiz, de nome “Abobrinhas”: “Cansei de ouvir abobrinhas / Vou consultar escarolas / Prefiro escutar salsinhas / Pedir socorro às papoulas / E às carambolas // Pedir um help ao repolho / Indagar umas espigas / Aprender com pés de alho sobre bugalhos / Ouvir dicas das urtigas / E dessas tulipas // Vou pedir um toque pro miosótis / Um palpite pro alpiste / Uma luz pra flor de lótus / Pedir alento ao cipreste / E pra dama da noite // Um bom conselho à sorralha / Sugestão pro almeirão / Idéias para azaléias / Opinião para o limão pimentão / Abobrinhas não”... Nos arranjos de trombones, o eterno Bocato, que na época da Lira Paulistana tinha uma banda instrumental da qual saía um monte de faísca fina – a Metalurgia. Na música-título, o flerte esperto, criticamente antenado, com a música eletrônica, num mix com sopros e esporros homéricos – “Nem bem cheguei me feri / Foi bala na cidade grande / Compondo sobrevivi / Cantar estancou meu sangue // Nasci moleque saci / Daí que nunca me entregue”... Vasto poeta é isso aí: “Antes da lei do ventre livre / Hermeto já era livre”... Com Zélia Duncan fez “Dor elegante” no último elepê, digo, cedê. Em seguida, surge “Pöltinglen”, Deutschland, onde “é bom estar ... meu bem / Tem gente mas silêncio de não ter ninguém”: a famosa disciplina alemã nos espetáculos públicos, o paraíso de João Gilberto.
“Quem quiser final feliz vá pra Florianópolis”... É o começo repentino de “Outras capitais”. Não tenho notícia de que Itamar Assumpção tenha estado um dia na Ilha de Santa Catarina, mas o que importa é a canção, as canções, que são vinte e uma em “Preto Brás”. De “Ich liebe dich”, em que a língua alemã (como disse) é percutida por voz e violão, a “Elke Maravilha”, “uma negra alemã”, e à malícia de “Olho no olho”: “Cartão postal é bacana mas bom mesmo é ter você na minha cama / Mensagem não é consolo, bom mesmo é ali olho no olho”, com todas as sílabas bem escandidas: “Por cabo TV satélite rádio via internet / Por modem fio ou telex, bom mesmo é tête-à-tête”... Em “Reengenharia”: “Meu amor, meu amor, meu amor / Não sou o Gabriel mas sou pensador”...
A fama de irascível (que felizmente não conheci, mas confesso que temi), que o crítico Pedro Alexandre Sanches identifica na Folha com São Paulo (brava, temperamental, apressada, criativa), veio junto com outras lendas: Itamar Assumpção ao lado do irmão no time da Portuguesa de Desportos, morando no Canindé, a qualquer hora prontos pra jogar bola, por exemplo. Filho de macumbeira entre os estados de São Paulo e do Paraná. A fama de feiticeiro. A fama de excelente ator, as apresentações teatrais – espero que se possa ver isso um dia em devedê, esperam com ansiedade aqueles que rastejam registros raros. Como a pseudópera “Gigante Negão”, de Arrigo Barnabé, que o próprio achou que tinha ido pro beleléu mas sobreviveu nas gravações em fita cassete de um velho show. No papel do Gigante Negão, é claro, Itamar Assumpção. “A pseudópera Gigante Negão foi apresentada apenas três vezes em setembro de 1990 no Palace em São Paulo. Até novembro de 1997 eu não sabia da existência de uma gravação deste trabalho”, diz Arrigo no encarte do cedê; e conclui: “...eventuais erros e esquecimentos de letras, cacos (Edson celulares) do Mário Manga, pequenos problemas técnicos, etc. etc. etc. fazem parte do que foi aquela segunda noite, no Palace em setembro de 1990”. Uma “pseudópera” contando uma história luciferina de ficção científica, com personagens como o cientista brasileiro Muco Miguel, que “surpreende a todos com os admiráveis resultados em suas pesquisas de clonagem” (antecipando em uma década um enorme debate do século XXI), inimigo número um do Professor Fero Farelo... Guitarras pesadas, teclados, metaleira e bateria, com Roney Stella (trombone), Mané Silveira (saxes) e Claudio Faria (trompete).
Na época dos “Tubarões Voadores”, segundo elepê de Arrigo Barnabé, com história em quadrinhos de Luiz Gê, houve um flerte com o samba e a canção, Roberto Riberti e Paulinho da Viola – este em um de seus mais improváveis temas, “Crotalus terríficus”, para o qual fez a belamente estranha letra, que conclui: “Crotalus terríficus,/ Me chamam certos senhores com malícia / Mas eu sou mística, não tenho nada de racional / Sou apenas uma cascavel no gosto popular”. Ser uma cascavel no gosto popular é ser Paulinho da Viola e Arrigo Barnabé simultaneamente, é ser Itamar Assumpção, é a fina síntese do antipop e do popular. Simultaneamente. E, bem a propósito, tem mais, tem Rita Lee, na primeira aproximação aos sabores do veneno, cantando “Kid Supérfluo, consumidor implacável”, uma sátira do star-system telenovelesco tupiniquim.
O Gigante Negão já é conseqüência de uma nostalgia de Clara Crocodilo após as experiências pops, envolvendo problematicamente o esquemão mafioso da grande indústria fonográfica, e a própria máquina das canções de consumo. Aí entram a tecnologia e um bom piloto, o tecladista Dino Vicente, produtor de “Suspeito”, elepê de 87 lançado pela desaparecida gravadora 3M. Aí rola uma experiência com o formato pop mais padrão, além de belas canções em parceria com Hermelino Neder. “Uga Uga”, no dueto de Arrigo Barnabé com Tetê Espíndola”, foi o hit antropofágico do disco. Mas parece que, depois dessa tentativa de aproximação com a grande indústria e a cultura de massas, o Gigante se aquieta, como se fosse o próprio Negão, digo, Itamar Assumpção. Que chegou a lançar um elepê por uma gravadora maiorzinha na época (1988), a Continental, tanto que o batizou como “Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!”...
A vanguarda transfigurada em pajelança de tecnumbanda pós-moderna: se há heróis, eles são os das histórias em quadrinhos, os das mais fantasiosas, os monstros, os clones, os mais ordinariamente extraordinários personagens. Como Gigante Negão, nascido das experiências do Dr. Muco Miguel, vulgo Miolo Mole. Depois da “Canção da Caveira”, lê-se gravemente no texto do encarte do Negão: “Agora estamos no século XXIII. Agora imensas corporações publicitárias dominam o planeta. Agora vivemos um tempo de satisfação garantida, onde todos têm acesso a tudo. Agora não existem mais problemas de ordem material; todo o universo conhecido é um gigantesco sistema de consumo. Mas, nem tudo é perfeito. Sim, persiste um velho problema, uma espécie de doença, que pode afetar interesses poderosos. Um tédio pegajoso, gosmento, enovelado, intrincado, entranhado”... “Tecnumbanda” diz em seguida: “Este é um mundo agonizante... fadado à extinção... nesse momento começam a ressurgir velhas práticas ... psicanálise, religiões, terapias, gurus, paranormais, videntes, profetas, e é nesse momento que nossa história continua, num centro de tecnumbanda na periferia de São Paulo”... E Itamar Assumpção então vai cantar, em “Deus te preteje” (de gostosa sonoridade oswaldiana), em sua ressurreição trezentos anos depois, de dentro do ovo translúcido em que o Dr. Muco Miguel havia depositado o clonado Gigante Negão. Essa ressurreição – como toda ressurreição – chama a atenção dos “deuses onipotentes dos mercados”: “Os publicitários, alertados pelas profecias e lendas que previam o surgimento de um novo Messias, logo ficam sabendo dos fatos ocorridos e tratam de providenciar para que o Gigante Negão não altere a ordem estabelecida. Para isso recorrem aos serviços de ‘Glória Gozosa’, a mais desejada cortesã. Sua missão: seduzir o recém-chegado, reduzi-lo a um estado de escravidão sexual e torná-lo permeável à sua influência, para que ele seja mais facilmente manipulado”. Mas o gran finale do Gigante Negão fica alegre e feliz, porque é ele quem faz Glória Gozosa chegar ao orgasmo através do riso, “conseguindo assim restaurar pelo riso a fertilidade perdida”. Macunaíma é convocado então para o epílogo da pseudópera com a “Encantação pelo riso”, de Wielimir Khliebnikov, “recriado por Haroldo de Campos” (conforme a errata do rústico encarte do rústico cedê). É Itamar Assumpção quem fala, rindo, gargalhando: “Ride, ridentes! / Derride, derridentes! / Risonhai aos risos, rimente risandai! / Derride sorrimente! / Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores! / Hilare esrir, risos de sobrerridores riseiros! / Sorrisonhos, risonhos, / Sorride, ridiculai, risando, risantes, / Hilariando, riando,/ Ride, ridentes! / Derride derridentes!”... Que pós-vanguarda é essa, então? Entre a tropicália e a cavalgada das Valquírias sintetizadas, ou melhor, clonadas, no delírio dodecafônico do antipop estudado de estúdio, a cafonalha vai pro brejo e abre alas ao fracasso tilintante da moda de ocasião, aquela que dá dinheiro mas não paga a pena de existir.
De modo que é urgente concordar com Fernando Barros e Silva, que diz em “Pérola negra”, também naquela Folha: “Para quem acompanhou, ainda adolescente, o surgimento simultâneo de Beleléu e Clara Crocodilo, no ano de 1980, era nítida a sensação de que havia ali um grande acontecimento, mas muito difícil, até pelo impacto da novidade, refletir sobre seu alcance. A procissão de horrores descartáveis da cultura brasileira nos últimos 20 anos e as sucessivas frustrações do país de lá para cá de certa maneira reafirmaram a força interna das obras de Itamar e Arrigo Barnabé. Suas apostas afinal estavam certas. A lira paulistana foi uma espécie de pós-tropicalismo lúcido e desenganado”. Lúcidos e desenganados, é isso aí, pegando a figura do marginal, Beleléu, e botando no lugar daquela tradicionalíssima do malandro do morro. Em Sampa não tem morro e a zona norte é a zona sul. Antes do rap da rapaziada periférica, Beleléu mostrou a que veio e, sobretudo, como vir, antecipando-se a tudo e a todos, lúcido e desenganado, alegre e banzo, o Gigante Negão do mundo – aqui e agora – cão.
MEDUSÁRIO (Box)
A Medusa serpenteante ganhou novos vértices em Curitiba desde a primeira etapa de seu périplo, iniciado com a revista de mesmo nome, que teve dez números entre 1998 e 2000. No ano passado adquiriu o estatuto de editora através de duas coleções, “Poesia para ouvir”, de poesia gravada, e “Réptil ruptura”, em livros de autores contemporâneos. “Quando lancei o Ladrão de Fogo, anunciei que estava também lançando uma coleção voltada para a gravação de poesia. Isto foi em 2001. Agora a coleção ganhará mais dois cedês de poesia”, diz o editor Ricardo Corona. Um deles se chama “Música” e é de autoria de Celso Borges, com participações especiais de Zeca Balero e do Cordel de Fogo Encantado. O outro disco é do artista multimídia Amarildo Anzolin – “Eu também” – que redireciona experiências anteriores, como “Única coisa” (2000), reunindo sua produção poética em livro, cedê e imagens. Ambos aparecem nos próximos meses.
A outra coleção em andamento, Ruptura Réptil, já conta com dois livros de poesia, Capimiã, de Jairo B. Pereira, e Lascas, de Ricardo Carvalho. Saem mais três livros até o fim do ano: Tortografia, de Eliana Borges e Ricardo Corona em mix de poesia e artes visuais, os poemários Biblioteca de navios, de Luiz Felipe Leprevost, e Espetáculo da sensações alheias, de Luciana Martins, além dos contos de Vamos passear na floresta?, de Wagner Mangueira. E como a cauda e a cabeça das serpentes medusinas volta e meia se encontram, é preciso pensar seriamente na possibilidade da aparição de outra dentição – quem sabe mais dez números – da revista de mesmo nome, segundo fontes autorizadas, encontráveis nos seguintes endereços: Editora Medusa, caixa postal 5013, Curitiba / PR, CEP 80061-990 (Telefax 41 - 262 9633 e E-mail: editoramedusa@hotmail.com).
MISS TEMPESTADE
Poema: Ricardo Corona
Música: Vitor Ramil
Miss Tempestade não tem tempo
O cinza avança sobre o azul
Hieróglifos elétricos riscam o céu
Escreva, Miss Tempestade
Que esse dia branco é seu
Despenque sobre esse vazio
Preencha o silêncio de Deus
Escreva, Miss Tempestade
Não contemporize a sua intensidade
Dói em mim uma dor estranha
E não há osso músculo nervo
Que me diga seu nome.
Dor assim eu carrego com calma,
Sem medalhas gazes anestesias
— Álibi algum alivia minha alma.
Dor assim eu carrego com charme —
Doendo mais que a lâmina dos dias.
Ter a alma durando no tempo
Durando como duram as dunas
As dores levadas pelo vento
Nenhuma dor durando inteira
Como as pedras duras
Um dia acordam dunas
(Matéria originalmente publicada noDiário Catarinense / Cultura n◦ 22 - Florianópolis, 12 de julho de 2003).
Sobre o Autor
Joca Wolff: Joca Wolff é autor dos livros Mário Avancini, poeta da pedra (1996), Julio Cortazar – A Viagem como Metáfora Produtiva (1998) e Pateta em Nova Yorque (2002). Os dois primeiros são “pequenas biografias insólitas” e o terceiro, de poesia. Todos foram publicados pela Letras Contemporâneas.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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