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O Opus Magnum de José Saramago
por Fernanda Massebeuf
*
publicado em 05/02/2007.
Relacionando esses conceitos com o Memorial do Convento (3) (1982), de José Saramago, poderíamos dizer que as contruções do texto, da Passarola e do Convento de Mafra seriam sinônimos do Opus Magnum na medida em que suas relizações representam ideais. A construção da Passarola representa uma utopia, a de voarmos como pássaros e dessa forma nos tornarmos imateriais como a alma. Ela também remete à idéia de liberdade e transgressão sobretudo numa época em que a Inquisição repreendia ferozmente tudo o que não estivesse conforme com suas normas. Por sua vez, o texto é circular, o que o remete à idéia de construção. Ele também é transgressor em relação aos padrões tradicionais de escrita. O Convento de Mafra representa a construção oficial apresentada nesse livro, aparecendo como pano de fundo de outra construção aparentemente anodina, a doa passarola ou mesmo a do próprio leitor, contrariando assim sua primeira impressão. Como resultarão essas construções na Pedra Filosofal? É o que descobriremos através desse breve comentário.
Quais são os procedimentos para se obter a Pedra Filosofal? Os alquimistas trabalharam bastante sobre esse assunto. Serviram-se de crendices populares e atravessaram gerações em sigilo absoluto, divulgando os Mistérios somente entre os iniciados. Representaram-nos sob a figura de deuses, monstros ou mitos com o intuito de confundir os leigos mais curiosos, ao ponto de tratarem como Núpcias Químicas a ligação do Enxofre com o Mercúrio: um casamento do masculino com o feminino, do rei com a rainha, do sol com a lua, do corpo com a alma. Para se chegar à Pedra era necessário atravessar quatro etapas: as Preliminares; a Preparação da matéria; o Cozimento e a Preparação da Pedra Filosofal.
Durante a etapa das Preliminares o alquimista devia basicamente construir seus próprios aparelhos e instalar seu laboratório num lugar tranqüilo, iniciando seu trabalho sempre na primavera, período frutífero e mais propício à fecundação. No Memorial do Conventosabemos que para se efetuar a construção do convento foi necessária a mão de obra de muitos homens, o que implicou em muito sacrifício, inclusive o de vidas humanas. Sabemos também que ele fora prometido pelo rei D. João V caso a rainha, Da. Ana, lhe desse um filho que viria a ser sucessor do reino português, p.14: Prometo, pela minha palavra real, que farei construi um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano. O romance inicia-se com uma cena de núpcias reais, uma das tentativas para o rei de dar um herdeiro ao trono lusitano e com um verbo conjugado no futuro, p.11: irá esta noite, que remete à idéia de prenúncio, de um olhar em direção ao futuro. A anedota real aparece na verdade em segundo plano, pois o que mais chama a atenção do leitor são os heróis anônimos que contruiram o convento. Inclusive Saramago presta-lhes homenagem no momento em que os nomeia do A ao Z, proporcionando-lhes a visibilidade negada aos personagens desconhecidos e primordiais para a execução desse projeto ousado de D. João V, p.250: Alcino, Brás, Cristóvão, (...) Xavier, Zacarias. Aliás, o rei vai chegar ao ponto de encomendar a ampliação da construção do conventocom o intuito de negociar com Deus o prolongamento de sua expectativa de sua vida. Esse fato revela o quanto ele era imaturo, inseguro e audacioso.
A construção da Passarola era a grande ambição do padre Bartolomeu. Sua engenhosa invenção vai se concretizar graças ao apoio de Baltazar e Blimunda, que vão se instalar em São Sebastião da Pedreira já batizados, ele como Sete Sóis por ver às claras e ela Sete Luas por ver às escuras, afim de materializarem o esboço do grande pássaro do padre voador. Essa máquina também representa a irreverência e rebeldia numa época de intensa repressão religiosa. A partir de uma perspectiva alquimista observamos que a união do Sol com a Lua não é anodina, pois o Sol representa o masculino, o pincípio ativo, o yang, o corpo e a Lua, o feminino, o princípio passivo, o yin, a alma. Esse dualismo sexual prova que os opostos se complementam e interdependem mutuamente, p.94: Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu. Lua onde estás, Sol aonde vais.
Quanto à circularidade do texto, podemos dizer que ela também remete à concepção cíclica alquimista em que os metais alcançando o estado de ouro a partir de um metal vil, fazem o percurso no sentido inverso infinitamente com símbolo universal do infinito, do universo, do todo. A figura geométrica do círculo é conhecida como representação do celestial ou o olho fechado de Deus por ser perfeita e sem começo nem fim. Além disso está presente na Pedra Filosofal, onde simboliza a transmutação do quaternário inferior em ternário divino, superior ao Homem. No livro de Saramago essa circularidade é evidenciada pelo fato do livro começar e terminar, com o Auto da fé, p.28: Vai sair a procissão da penitência, p.373: virou para a direita na igreja de Nossa Senhora de Oliveira, em direção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte e oito anos. O livro também começa com a chegada de Baltazar em Lisboa, p.41: Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora alta de muros ecasas e termina com o desaparecimento de Baltazar pelos céus, antes que ele termine seus dias na fogueira da Inquisição: Baltazar viu os panos arredondarem-se para o lado com o estrondo, o sol inundou a máquina, brilharam as bolas de âmbar e as esferas. O autor possui uma escrita sui generis no que diz respeito à pontuação e à valorização da cultura popular através de um vocabulário regional, simples, mas rico em provérbios, p. 137: é já real trabalho levantar uma parede direita, a fio de prumo, não esse ofício de sarrafos e pregos, p.143: na vida tem cada um sua fábrica. Essa valorização do popular, do trabalho artesanal também vai ao encontro do preceito alquímico do construir com as próprias mãos. Além disso, notamos a transgressão do autor no que diz respeito à escrita convencional. O narrador é autoritário, omnisciente e nos guia a partir de sua visão dos fatos, muitas vezes dando sua opinião acerca deles, p.236: perdendo-se elas no meio da multidão, vivas, sim, talvez saíssem, mas violadas, como hoje diríamos, não tentarás o Senhor teu Deus, e se o tentares não venhas depois queixar-te de que ficaste grávida.
Seria interessante relevarmos a explicitação da arte alquimista presente no texto: p.121: Regressou o padre Bartolomeu da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos passados, p.122: estudei com alguns sábios velhos e alquimistas, desses que sabem fazer nascer sóis dentro de retortas, p.97: E Blimunda disse, Se o sol atrai o âmbar, e o âmbar atrai o éter, e o éter atrai o íman, e o íman atrai o sol, a máquina irá sendo puxada para o sol sem parar. Enquanto que nas Preliminares se construía aparelhos, laboaratório (labor = trabalho e oratório = local de orações), na Preparação da matéria da Grande Obra se formava um novo corpo reunindo-se os dois princípios antagônicos, que deveriam estar previamente elevados ao estado de pureza absoluta.
Pressupondo-se que tudo na Natureza é formado da mesma matéria única, composta de dois princípios antagônicos, podia-se empregar qualquer substância vegetal, animal ou mineral. Preferiam os alquimistas por razões de ordem prática trabalhar com minerais, ouro e prata, por exemplo, e sempre em doses homeopáticas, pois eram os metais passíveis de transmutações consideráveis. Simbolizados respectivamente pelo Sol e pela Lua, eram considerados como os corpos mais ricos em princípio Enxofre, o masculino e Mercúrio, o feminino, que unidos engendrariam outros metais no que se poderia chamar Casamento Filosófico ou Núpcias Químicas entre o Enxofre e o Mercúrio. Recaptulando o que já foi dito, o Sol representa o masculino, o pincípio ativo, o yang, o corpo e a Lua, o feminino, o princípio passivo, o yin, a alma. Na perspectiva do romance poderíamos nos remeter ao rei D. João V e da rainha Da. Ana, representantes da nobreza que devem se unir afim de fecundarem um herdeiro para a coroa portuguesa. Poderíamos fazer um paralelo entre eles e o Casamento Filosófico na medida em que os princípios antagônicos de cada um deles se amalgamariam. Acerscentaríamos ainda quealém da oposição masculino x feminino, eles se assemelham através de suas fraquezas de caráter, sem esquecermos de mencionar que entre os nobres os casamentos eram arranjados de modo a privilegiarem os acordos políticos entre reinos distintos, deixando para o povo os matrimônios por amor. O rei e rainha são na verdade meros figurantes da trama deixando os papéis protagonistas para Baltazar e Blimunda, que incarnam os dois astros e são batizados por padre Bartolomeu como Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, p.94: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, fazendo alusão sobretudo ao dom nato da moça de poder ver as pessoas por dentro, além das aparências.
Para obter sucesso na empreitada da Passsarola seria necessária a união das forças de Baltazar e Blimunda, que se encontravam em São Sebastião da Pedreira juntamente com o padre Bartolomeu para tal fim. Retomando a alquimia, onde o Casamento Filosófico do Enxofre com o Mercúrio era muitas vezes representado pelas figuras de um rei vestido de vermelho e de uma rainha vestida de branco, unidos pelo terceiro elemento, o sal, representado por um padre celebrando o casamento, o leitor associa imediatamente os três elementos aos três Bês, nomes iniciado pela letra B, que aponta para o bem, Bartolomeu, Baltazar e Blimunda. Seria interessante elucidarmos a simbologia do número sete na medida em que ele sempre foi revestido por uma áurea de fascínio e mistério. Sete é o número representante da virgindade, da formação, da duração com os sete planetas, os sete dias da semana, as sete notas musicais, os sete níveis dos estudos (trivium e quadrivium), as sete virtudes, os sete pecados capitais, os sete dons do Espírito Santo e a aliança com Deus. O sete é sem dúvidas número sagrado por causa da alternação das quatro fases da lua em sete dias. Além disso ele evoca a plenitude, a integridade e a conclusão, sendo a soma do três, símbolo celeste com o quatro, símbolo terrestre. Mais uma vez acentua-se a união de Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.
Quando Saramago direciona os holofotes sobre Sete-Sóis e Sete-Luas não será somente para dar visibilidade aos personagens menos creditados da história. Ele quer iluminar sobretudo o caráter humano desses dois indivíduos e mostrar oamor perfeito entre um defeituoso físico e uma visionária. Baltazar é apresentado como um anti-herói, pois é maneta, mendigo, um nômade que tenta todas as estrepolias para sobreviver, e aos olhos de Blimunda torna-seo homem mais perfeito do universo, bonito, corajoso, o companheiro ideal, p.55: Baltazar está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzentos (...) e às vezes tornam-se negros noturnos. Quando se encontramvai haver empatia imediata entre eles, vai haver uma alquimia, uma união transcendente do palpável, p.56: Aceitas para tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, (...) Então declaro-vos casados. Além disso eles vão se unir carnalmente, p.57: Deitaram-se, Blimunda era virgem (...)Correu algum sangue sobre a esteira (...) Blimunda disse a Baltazar, nunca te olharei por dentro. Poderíamos abrir parênteses aqui para reiterarmos o fato de existirmos através do outro, do olhar do outro, o que no permite também compreender o mundo através de um olhar partindo do diferente ou de nós mesmos. Vemos e sentimos o outro a partir do que somos. Blimuda quando estava em jejum era capaz de ver e sentir as pessoas por dentro, penetrar em suas intimidades e descobrir seus segredos, nem sempre agradáveis. Por isso ela jurara a Baltazar de nunca ver seu interior, por isso seus olhos camaleavam-se de acordo com o jardim secreto de cada um. Da união entre Baltazar e Blimunda , o ouro e a prata resultaria uma substância azulada gelatinosa, uma espécie de alga esparramada pelo chão. A purificação dos dois metais era representada por uma fonte onde o rei e a rainha viriam mergulhar três vezes afim de revelar a polaridade entre eles. Em seguida ocorreriam uma série de operações cujo objetivo era a otenção da matéria que se aproximava da Obra, simbolizada por um líquido fechado em um frasco de gargalo estreito, o Ovo Filosofal.
Como Blimunda e Baltazar uniram suas forças às do padre voador em São Sebastião da Pedreira em prol da realização de um grande projeto, retomamos o símbolo do tríptico para prosseguirmos com as outras etapas do Opus Magnum. O número três, a Santísima Trindade, os três Bês de Saramago, os três mundos: Deus, Natureza e Homem. Três é a síntese do um e o dois, símbolo do Todo, da meditação. Refere-se também à trindade imediatamente perceptivel de realização criadora do homem e da mulher na figura da criança. A alquimia propõe três princípios fundamentais: o Enxofre, o Sal e o Mercúrio. Falamos também em Santíssima Trindade, considerada como unidade divina composta de três pessoas.Aqui o leitor percebe claramente a unidade formada pelo padre, Sete-Sóis e Sete-Luas. Cada um deles possui um dom fundamental. A figura do padre é associada à religião, ao suporte divino, ao mesmo tempo ao sonho de voar, que evoca a esperança no futuro, e também à vontade de alçar vôos longínquos permitindo visão privilegiada do mundo, visto do alto. Dessa forma poderíamos talvez encontrar novas possibilidades. Baltazar é associado ao Sol, que graças ao seulevantar e deitar diários inspira a ressureição como forma de renascimento, de renovação. Iluminando o mundo afim de torna-lo visível e mais claro à nossa compreensão. Ele éum homem muito corajoso que sabe compensar a perda de sua mão esquerda. Na alquimia vai se completar com seu oposto, a Lua, Blimunda, mulher doce, desprendida das riquezas materiais, interressando-se muito mais ao ritmo da vida graças ao seu poder de ver além do invólucro carnal. O desenvolvimento excepcional de sua visão a coloca em estreita relação com a luz, com a visão espiritual que funciona como espelho da alma.
Uma vez que a Passarola é construída é necessário o combustível para fazê-la voar. O padre Bartolomeu trouxera da Holanda o segredo do éter, que nada mais era que a vontade dos homens capaz de segurar as estrelas no infinito, p.130: mas o éter antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres (...) o éter compõe-se da vontade dos vivos. E as vontades se apresentamaos olhos de Blimunda, a partir do instante em que procurou vê-las, sob a forma de nuvens fechadas. A grande lição dessa anedota é nunca perdermos a esperança no que acreditamos e seguirmos em frente sem temer os obstáculos interponentes. O sonho, a esperança e a ilusão nos mantêm vivos. Saramago possui convicções comunistas, é inclusive filiado ao Partido desde o ano de 1969. Acredita-se que delas brotem suas utopias. Blimunda persiste em sua busca pelas vontades examinando uma hóstia, vendo a nuvem fechada em seu interior. Compreendemos que a nuvem fechada representa a vontade dos homens vivos e daí a certeza da existência dessa energia circular no sagrado. A energia circula habita tudo o que faz parte do Homem, da Natureza e de Deus. Se Sete-Luas põe em causa um elemento relacionado a Deus é para reforçar a fé preexistente que consagra a ele.
Satisfeita a curiosidade de Blimunda, o momento é o de armazenar as vontades em frascos de vidro, dentro dos quais havia uma pastilha de âmbar amarelo, o electro com a finalidade de atrair o éter, p.130: quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas aproximas o frasco aberto, a vontade entrará nele. Na alquimia a vontade ou a matéria da Obra permanecia fechada no Ovo Filosofal ou Ovo do Mundo em analogia à Criação. Dele deveria sair a Pedra Filosofal após um longo procedimento químico: aquecimento, cristalização, condensação de vapores, mudança de cores do negro ao branco e ao vermelho passando pelo cinza, verde, amarelo, arco-íris, etc. As três cores principais, negro, branco e vermelho, representavam respectivamente a putrefação, a ressureição e a rubrificação, que poderiam ser análogas as dúvidas de Blimunda, ao seu aprendizado e a utllização das vontades para fazer a Passarola voar.
A partir daí o alquimista iniciava a Preparação da Pedra quebrando o Ovo Filosofal afim de extrair a matéria vermelha, a Pedra Filosofal, vermelha e perfeita, condensação ativa do Spiritus mundi, o começo e o fim de todas as coisas. A alquimia não terminava aí. A Pedra devia ser misturada ao ouro fundido para poder ser utilizada. Ela se apresentava então sob a forma de um pó vermelho translúcido que se tornava cada vez mais vermelho, sendo capaz de penetrar no mercúrio e em todas substância macias ou mesmo duras transformando-os em uma outra própria à fabricação do ouro. A operação de transmutação do metal vil em ouro se chamava projeção. A Pedra Filosofal também possuía propriedades medicinais, curando absolutamente todas as doenças.
Assim sendo, uniram-se os olhos de Blimunda e a mão direita de Baltazar, retirou-se a quintessências das coisas e a máquina voou, sobrevoou Mafra, p.202: Baltazar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida (...) O padre veio a eles e abraçou-os também (...) dissera Deus ele próprio, Baltazar seu filho, Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus. Aqui a quintessência oriunda de todas as coisas permitiu voar a máquina do padre Bartolomeu, o que reforça a crença na energia vital que desce dos céus, exercendo grande influência sobre todas as coisas e, principalmente, sobre os trabalhos executados pelos alquimistas, mas somente os pouco ordinários que conseguiram acessar a suprema consciência através da depuração da alma, desejos e paixões terrestres transformados pela transmutação espiritual, elevando o indivíduo rumo ao Belo, ao Verdadeiro e ao Bom. Através da alquimia espiritual descobriu-se a verdadeira Pedra Filosofal, o homem purificado e realizou-se a Grande Obra, realização do plano divino de evolução, progesso, expansão e crescimento em nossa vida pesoal no verdadeiro laboratório químico que nada mais é que uma representação metafórica do próprio ser humano.
A concepção espiritual da alquimia abrange as sucessivas fases da preparação da Pedra Filosofal que viriam ao encontro de sucessivas purificações do ser humano em sua busca do conhecimento iluminador. Daí retomarmos a idéia de construção com o intuito de reforçarmos a inesgotável busca do homem de seu aprimoramento enquanto ser humano personificado por Blimunda graças à sua pureza, ao seu desprendimento do plano material, o que lhe proporcionava a visão penetrante no que não se queria mostrar aos outros. Após várias peripécias desncontrando-se de Baltazar, ela deambula durante nove anos em sua busca. Esse fato lhe permitiu uma profunda introspecção, conhecer pormenorizadamente o verdadeiro Portugal através de seu povo, p.370: Sentava-se às portas, a conversar com as mulheres do lugar, ouvia-lhes lamentações, os ais. Sem perder a esperança de reencontrar seu homem ela enfrentava resignada intempéries e acidentes geográficos, p.371: tudo se media em manhã, tarde, noite (...) caminho bom, caminho mau. Essa busca por Baltazar é analoga a busca de si mesmo, da purificação a partir da depuração do que não vale a pena ser conservado. O período de nove anos remete ao período de gestação, ao símbolo da criação, da perfeição, da continuidade da vida. Ela também representa a esperança, a convicção de que é possível um mundo melhor. Prova disso é que Blimunda encontraráBaltazar, pagando com a própria vida por ter acreditado no sonho de padre Bartolomeu. Nesse momento Blimunda atrai para si a vontade de seu companheiro, p.373: E uma nuvem fechada está no centro de seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltazar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se àterra pertencia e a Blimunda. Como a figura de Baltazar é ligada ao Sol, ao Enxofre e à terra, sua vontade não poderia subir rumo aos céus e se volatilizar. Ele e Blimunda estavam eternamente unidos. Como o Sol atrai a Lua, e vice-versa; o Enxofre interage com o Mercúrio e a terra com a água, sua essência permaneceráunida para sempre com a de Blimunda, proporcionando deste modo a transformação de Blimunda em Pedra Filosofal. Transpomos a transformação de Blimunda a todos os leitores do memorial do Convento que aceitaram fazer de uma simples leitura uma grande viagem que teve com resultado a transformação interior de cada um deles.
Saramago é um alquimista graças à chama mantida sempre acesa de esperança em um mundo melhor, ao seu espírito renovador. Através da obra Memorial do Convento percebemos a união do Enxofre, relacionado com os ideais e a mensagem transmitidos pelo autor, com o Mercúrio, relacionado com a cultura geral prévia do leitor, através do Sal, o objetivo pedagógico do autor. Essa fórmula nos conduz ao estágio de Pedra Filosofal. O autor nos conduz pelas mãos e nos mostra o universo a partir de perspectivas diferentes das convencionais, o que nos permite desenvolver nosso espírito crítico aguçado à uma análise profunda e imparcial da realidade em que vivemos. Reconhecemos também fazer parte de uma unidade cósmica onde tudo é animado e tem uma alma, ou seja, fazemos parte de uma globalidade que pode com certeza atingir aperfeiçoamento a partir do mesmo para cada uma de suas unidades constituintes.
1) Le Petit Robert, Paris, 30ème éd., juin 2000, p.60.
2) Hutin, Serge, LAlchimie, Paris, PUF, 10ème éd., 1951.
3) Saramago, José, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 38.ª ed., 2006.
Referências Bibliográficas
Benoist, Luc, Signes, symboles et mythes, Paris, PUF, 9ème éd., 2003.
Brach, Jean-Pierre, La symbolique des nombres, Paris, PUF, 1994.
Hutin, Serge, LAlchimie, Paris, PUF, 10ème éd., 1951.
Jouve, Vincent, La poétique du roman, Paris, Armand Colin, 2001.
Saramago, José, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 38.ª ed., 2006.
Le Petit Robert, Paris, 30ème éd., juin 2000, p.60.
Petit Dictionnaire des Symboles, Paris, Brepolis, 1992
Sobre o Autor
Fernanda Massebeuf: Fernanda Massebeuf é graduada em LLCE (Língua, Literatura e Civilização Estrangeira) pela Universidade Sorbonne - Paris IV. Realiza atualmente um Master (Mestrado) a fim de se especializar em literatura brasileira, desenvolvendo estudo sobre a poesia de Hilda Hilst.Email: ferdie45@hotmail.com
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