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Do amor, demônio e despontuações

por José Aloise Bahia *
publicado em 26/01/2007.

1996: Encontram-se por acaso num cinema. Belas Artes. Observam os cartazes duma mostra sobre o amor, trocam olhares e, ao mesmo tempo, perguntam um ao outro: "Qual filme vai assistir?" A coincidência da escolha, digna de uma simples cumplicidade, foram as poltronas da primeira fila, pois são míopes e usam lentes de contato. No primeiro encontro, embalados pelo Tema de Lara, concordam em quase tudo, até no filme, Dr. Jivago de David Lean. Ambos somam dois pontos.

1997: Pacto com a lua. Comemoram um ano de namoro com vinho italiano e lasanha verde. Algo inédito aumentam as expectativas, pois ele deu pra ela um anel cravejado de esmeraldas. Terminam a noite fazendo amor, mas antes como sobremesa assistem Midnight Cowboy de John Schlesinger. Formam um casal cult e reticente...

1998: No começo do verão, a barriga já está enorme. E o dia ensolarado convida para um mergulho. Na praia, recordam o primeiro encontro, o primeiro beijo, os filmes e os momentos sublimes que passaram juntos. No final das férias, tomam uma decisão. A partir dali somente películas inglesas. Casam-se grávidos: a exclamação que faltava na vida dos dois.

1999: A primeira tempestade: os nomes das crianças. Apareceu um desacordo mal resolvido durante o namoro, pois ele é da umbanda e ela do candomblé. Após o DVD Gêmeos, mórbida semelhança do canadense David Cronenberg - não resistiram e apelaram para diretores de outros países - entram num acordo, Cosme e Damião. Pertinência do detalhe: também foram batizados na Igreja Católica Apostólica Romana para dar uma satisfação aos avós. Ficou um ponto e uma vírgula no ar...

2000: Final da amamentação. Todas as vezes que Paulo retorna do escritório - era advogado -, Cosme pula de alegria. Damião, chora. Por outro lado, Paula volta a trabalhar na clínica fisioterápica. Contratam uma babá. Morgana. Feito uma fada, além de cuidar das crianças, faz quitutes que são uma delícia. Uma pessoa plural. Limpa, passa, abre e fecha portas, janelas e parênteses.

2001: Paula descobre camisinhas nos bolsos de Paulo. Fica calada e começa a ler Florbela Espanca. Os filmes ficam em segundo plano. No inverno, a família viaja para a serra Gaúcha. Na volta, uma surpresa: uma carta anônima. Eis a vírgula que faltava nessa história.

2002: O ano começa com um ar de quem comeu e não gostou. Determinadas coisas não devem ser ditas, muito menos comentadas. Quer dizer, cometidas. Arrependimento também se faz sentir. Abafam o caso. 2002 foi um ano de amargura, suor, desafetos, convivência difícil, prelúdio de raiva e interrogações.

2003: Menino ou menina. Menina. A babá reaparece com uma criança no colo. Veio ao mundo para semear a separação. Rosemary é o nome dela, escolha de dona Cleusa, mãe de Morgana. Tem a cabeça chata, orelhas grandes, cabelos pretinhos, sobrancelhas grossas e olhos azuis. É a cara de Paulo, pois o sinal de nascença é uma pinta cabeluda na testa no formato de um travessão.

2004: Dormem em camas separadas. Vão tocando o barco, mas reaparecem os desajustes espirituais. Paula começa os trabalhos no candomblé e tem o primeiro ataque pra valer de raiva, que acaba virando ódio. Deseja matar o marido. Paulo rebate com a umbanda. É macumba pra todos os lados. Morre o avô materno, de desgosto. Paulo cai da escada e quebra a perna. No final do ano, uma briga mais feia acaba na polícia. Separação de corpos e pedido de divórcio. Parece um ponto final. Será!?

2005: O processo dura 180 dias. O fruto da discórdia - um demônio para a família - cresce, e cresce também a desarmonia, qualquer tentativa de entendimento. Paula fica com a casa, carro e imóveis. A situação agrava-se para o ex-casal. Paulo coloca três pontes de safena. Cosme e Damião adoecem. Rosemary vai com a mãe Morgana, nascida em Valadares, para a Flórida tentar uma nova vida. O carro da ex-mulher de Paulo despenca de um viaduto. Fratura Exposta. Reencontram-se no hospital da cidade do interior. "A vida é um inferno". O ódio, de ambos os lados, só aumentava em pontos e vírgulas.

2006: Continuam separados até hoje...

"Cada um sabe do seu destino". Agora é aguardar 2007, com os olhos fixos em carnes trêmulas, pois Paulo piorou. Depressão crônica. Paula de tanto ver os filmes de Pedro Almodóvar namora um enfermeiro, que cultiva um belo jardim na casa do ex. Moral da história, se é que existe uma: o diálogo e o desejo murcham com o tempo, só depende do casal, e a linguagem requer novos sinais gráficos, articulações, fantasias e pontuações. Sem falar nas palavras verbalizadas, as omitidas e os contextos. Enquanto isso, Paulo compra uma arma...

Sobre o Autor

José Aloise Bahia: José Aloise Bahia nasceu em nove de junho de 1961, na cidade de Bambuí, região do Alto São Francisco, Estado de Minas Gerais. Reside em Belo Horizonte. Tem ensaios, críticas, artigos, crônicas, resenhas e poesias publicadas em diversos jornais, revistas e sites de literatura, arte e imprensa na internet. Pesquisador no campo da comunicação social e interfaces com a literatura, política, estética, imagem e cultura de massa. Estudioso em História das Artes e colecionador de artes plásticas. Sócio fundador e diretor de jornalismo cultural da ALIPOL (Associação Internacional de Literatura de Língua Portuguesa e Outras Linguagens) Estudou economia (UFMG). Graduado em comunicação social e pós-graduado em jornalismo contemporâneo (UNI-BH). Autor de "Pavios Curtos" (poesia, anomelivros, 2004). Participa da antologia poética "O Achamento de Portugal" (anomelivros, 2005), que reúne 40 poetas mineiros e portugueses contemporâneos.


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