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Veste Prada, mas sabe o que faz
por .::. Verdes Trigos Cultural .::.
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publicado em 27/09/2006.
EU SABIA que era bobagem, de modo que não posso reclamar. Confesso: fui ver "O Diabo Veste Prada". Os cartazes do filme de David Frankel se espalham por toda a cidade. Posso sobreviver mais ou menos incólume aos anúncios que me mandam vestir roupas de Armani ou Zegna, mas não resisto a um lançamento cinematográfico tão propagandeado como esse.
Com alguma indulgência, a revista "The New Yorker" disse que o filme era superficial, mas tinha uma maravilhosa superfície. "O Diabo Veste Prada" é menos que superficial, é bobinho. E é mais que superficial também: é diabólico, num sentido que tento explicar.
No papel de Andy, estagiária novata numa chiquérrima revista de moda internacional, a atriz Anne Hathaway lembra um pouco a Audrey Tautou de "Amélie Poulain": olhos de jaboticaba, modos simples, certo ar de embaraço típico de uma boa garota "normal".
Mas é uma Audrey Tautou que, desde o início do filme, já aparece turbinada -alta, sem tanto açúcar, deslocando-se na tela com a independência que as belas mulheres sabem manter diante da revoada de olhares que suscitam.
Ei-la que vai pedir emprego na sede novaiorquina de uma das maiores revistas de moda do planeta. Tratam-na como lixo: não é bonita o bastante, não é magra o bastante, veste-se como uma mendiga, é uma aberração da natureza.
A essa altura, já estamos presos à armadilha do filme. "Como assim?", pensa o espectador. Anne Hathaway não é bonita o bastante? O que será preciso para torná-la espetacularmente bonita?
A resposta, claro, é que ela precisa usar Prada. Ou Valentino. Ou Dolce e Gabbana. Nunca o merchandising esteve tão imbricado à própria estrutura narrativa de um filme como neste caso. E o que se segue é um deslumbramento de vestidos, cortes de cabelo, bolsas, sapatos... Que passaremos a admirar, por mais frívolo que tudo isso nos pareça.
Experimentamos, imaginariamente, a mesma transformação pela qual Andy passa durante o filme: de início crítica, irônica, indiferente face às imposições da moda, ela acaba se conscientizando de tudo o que aquilo tem de bom, de belo, de desejável. Trata-se de um duro, interessante e rico aprendizado. Nisso, basicamente, concentra-se a mensagem do filme para o público consumidor. Acontece que, se se resumisse a isso, "O Diabo Veste Prada" não passaria de uma longa e fantástica peça de publicidade.
A habilidade diabólica do filme está em promover uma espécie de auto-boicote, desmentindo na aparência a mensagem publicitária que de fato possui. Toda a superfície da história se encaminha no rumo de uma lição edificante: o melhor são os valores simples da vida, quem se entrega à ambição e aos casacos de pele vende a alma, perde os amigos, perde seu verdadeiro amor.
Se a vontade dos autores do filme fosse realmente dizer isso, teríamos material para um ótimo drama. Uma cena isolada de "O Diabo Veste Prada" chega perto dessa possibilidade. Num quarto de hotel, a poderosa editora da revista (Meryl Streep) se vê repentinamente destituída de todo o aparato cosmético e toda a segurança psicológica de que esteve caricaturalmente investida.
Sua imagem uma mulher velha, acabada -e ainda assim incapaz de despertar nossa compaixão-, ocupa a tela como uma explosão sem som.
É o único momento em que o filme se abre para o real. Pois a principal artimanha de "O Diabo Veste Prada" está em supostamente defender uma mensagem "correta", do tipo "seja você mesma, querida", num registro de total irrealidade cômica. Afinal, estamos todos conscientes de que essa história de beleza interior, de namoradinho pobre, de vida simples, é pura balela. Não só isso: também toda a maldade, todo o horror, toda a humilhação que Andy irá conhecer em sua descida aos infernos da moda não são muito para valer. Os deslizes éticos da protagonista, em sua escalada para o sucesso, são de uma inocência a toda prova. As vilanias de sua chefe são menos reprováveis e mais imaginárias do que as de Cruela Cruel, no desenho animado da Disney.
Ah, mas o filme é só uma comédia... E boa comédia, aliás: as tiradazinhas irônicas de uma personagem contra a outra, com destaque para o excelente editor de moda da revista (Stanely Tucci), seguem a melhor tradição das sitcoms americanas. Mas é uma comédia que preserva com unhas e dentes tudo o que finge ironizar. "O Diabo Veste Prada" pode ser uma gracinha de filme, mas não brinca em serviço.
MARCELO COELHO => http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2709200619.htm
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