Crônicas,contos e outros textos
PÁGINA PRINCIPAL → LISTA DE TEXTOS → Ronaldo Andrade →
Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural
VerdesTrigos está hospedado no Rede2
Leia mais
-
NOSSOS AUTORES:
- Henrique Chagas
- Ronaldo Cagiano
- Miguel Sanches Neto
- Airo Zamoner
- Gabriel Perissé
- Carol Westphalen
- Chico Lopes
- Leopoldo Viana
- mais >>>>
Link para VerdesTrigos
Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.
Anuncie no VerdesTrigos
Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui
A fria noite do silêncio
por Ronaldo Andrade
*
publicado em 28/05/2006.
Mas nas nossas noites de Bagdá – comparação mais precisa – a realidade, que já batia à porta, arrombou-a de vez: enquanto se limitava aos guetos, passava. Agora não mais: invadiu toda a cidade, como num assombroso tsunami que, segundo consta, ainda nos aguarda. Comércio fechado, pontos de ônibus lotados no meio da tarde, celulares indisponíveis (os dos bandidos funcionam), pessoas apavoradas.
Fui dar uma volta, lá pelas 18h00. Nem pra comprar um pãozinho dava. Ou melhor, apenas em alguns locais, como na padaria Viena, na Rua Oswaldo Cruz. “Vou encerrar daqui a pouco, mas temos que continuar vivendo”, disse o proprietário, Carlos Ferreira, que realmente fechou o estabelecimento mais tarde. Na UNISANTA, não houve aulas. A noite, juntamente com a fina chuva que começou a cair, produzia um aspecto ainda mais sombrio à cidade. Encontro com um “motoboy” da TV Cultura, Heleno, que veio buscar uma fita da Santa Cecília, com imagens da rebelião do CDP de São Vicente para exibição no telejornal das nove.
Lembrei-me do Rota 66, Caco Barcellos. “A Polícia já me parou várias vezes, mas quando vêem meu uniforme, me deixam passar”, diz. Isso é o que me assusta, pois não tenho nenhuma vestimenta que me identifique como imprensa, apenas a carteirinha de estudante de Jornalismo, improvisada como crachá. O receio não é me deparar com possíveis bandidos, mas o olhar de desconfiança das poucas pessoas que transitam pelas ruas e também dos policiais, mas não encontro nenhum. Arrisco fotografar alguns estabelecimentos comercias que àquele horário deveriam estar abertos, e os vigilantes, tão assustados quanto eu, correm para impedir. E quando digo “Imprensa” e mostro o improvisado crachá, a resistência baixa. Mas nem tanto assim.
No Centro, a mesma situação. As ruas ao entorno das delegacias estão bloqueadas, proteção justa para quem arrisca a vida e se tornou o principal alvo. Nesta guerra, estamos ao lado da Polícia. Mas nem por isso arrisco fotografar. Tenho medo. Na Praça José Bonifácio, o Fórum cercado. Nunca imaginei o centro do Poder Judiciário sitiado. Quem sabe a proximidade com a Catedral ajude a obtenção das bênçãos divinas, as únicas, talvez, a nos salvar.
Mais uma volta, e vejo uma pequena porta, com uma escassa luz na entrada. “Tá fraco o movimento, meninas?” pergunto às primas, que se mostram entusiasmadas com um possível cliente numa noite de pouco movimento. Elas reclamam que até o momento, 19h00, nada. Ando uma quadra e vejo uma pequena igreja, com as portas abertas.
Vazia. Pecadores e santos, diferentes em quase tudo (ou nem tanto, diria um cínico) têm um sentimento comum, que se estende a toda Cidade: o medo. Medo de sair às ruas, de seguir o curso habitual, de colocar a cabeça na janela, observar o movimento atrás da cortina e através da TV, do rádio, da internet. Compreensível, mas é diante da adversidade que devemos mostrar bravura, arregaçar as mangas e realizar ações que visem à melhoria da população. Clichê? Sim, mas um clichê verdadeiro.
De manhã, Santos parece voltar à vida normal, embora normalidade seja um conceito relativo. Vamos continuar vivendo, até porque não há alternativa, só a morte, que tanto nos assusta e que, de mãos dadas com o pavor, tão presente se fez na cidade nessa fria noite de silêncio.
Sobre o Autor
Ronaldo Andrade: Brasileiro radicado em Portugal. Vinte e sete anos de histórias fantásticas: foi morar em Portugal, conheceu José Saramago (que o incentivou a escrever), escreveu e lançou um livro (à venda no Brasil e em Portugal) e acabou sendo contratado por um time da segunda divisão do futebol português.Contato:
O livro "A mulher do comboio" pode ser adquirido pelo telefone(00 351) 91 433 22 70 ou pelo e-mail roanoli@uol.com.br
< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
LEIA MAIS
Existe uma razão infinita nas coisas feitas com afeição, por Carol Westphalen.
DE COSTAS PARA O LEITOR, por Chico Lopes.