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Antes que a carroça retorne
por Pablo Morenno
*
publicado em 05/08/2006.
Três anos ele tem, eu acho. Cabelos escuros por cor e sujeira, barriga saliente, pernas fininhas e um rostinho infinito lambuzado com doce de leite vencido. Não pedi autorização para os pais. Distraíam-se carregando a carroça. Dedicavam-se mais ao maior, de seis sete anos, que atento aprendia o ofício. O menor, este que eu trouxe pra casa, ainda é criança demais. Ainda não vê diferenças entre latas e plásticos, ou entre tecido e papel. São poucos seus anos de mundo pra tanto.
Entre um sorriso e um tombo, largava os segredos do lixo, e interrompia a mulher sua mãe. O doce de leite estragado lhe trouxera saudades do escasso leite daquelas tetas. Enquanto no alto dos prédios pais e filhos planejavam férias na Disney, meu menino inventava seu parque entre os restos urbanos de um dia.
Eis o menino. Não parece encantado?
Sozinho não viria. De jeito nenhum. Fui obrigado a trazer numa caixa o seu mundo. Latas multicores, garrafas, tampas, vidros, jornais e panelas. O menino dá cambalhotas e sorri entre os trecos. Nem imagina riscos de cortar-se com faca oxidada ou contaminar-se com bactérias de coisas podres. Atira uma tampa de bule pro alto e um avião sobrevoa. Disquinhos de papel dos perfuradores caem como estrelas em seus cabelos. Uma grande tira de papelão virou a montanha russa mais longa da terra. O lixo é um quarto mágico. Igualzinho ao das crianças de meu edifício.
Fitei o menino, ainda de peito, em seu parque e, filhos não tendo, fiz minha escolha. Já que está longe da mãe - desculpem, dentistas - manterei a chupeta. Apenas a substituirei por outra, mais nova e mais limpa. Não quero vê-lo outra vez esfregando seu bico de látex na terra e, depois, no céu de sua boca sonhar um sabor chocolate.
O menino no meio do lixo parecia um deus miniatura. Com o poder da infância transformava qualquer coisa em brinquedos, e moldava um novo mundo com restos e velharias. Este menino agora está aqui. Com seu rostinho lambuzado de doce me olha implorando cuidados.
Reuni sobre a mesa todos meus frascos vazios. Mas menino e doçura são grandes demais pra pequenos espaços.
Durante o vazamento do crepúsculo, a família subiu à carroça e, açoitando seu velho cavalo, sumiu no horizonte da rua. Ninguém apareceu aqui em casa procurando um menino perdido. Até agora. Mas eu preciso escondê-lo antes que venham roubá-lo pra sempre de mim.
É quase meia noite. Estou exausto. Abri e fechei gavetas, troquei os móveis de lugar, reuni todos os vazios da casa. Em vão. É pouco espaço pra tanto mundo. Por falta de alternativas, estou escondendo o menino adocicado nesta crônica. Espero que você, ao contemplar sua carinha lambuzada de doce de leite, me ajude a criar um mundo maior e mais doce pra ele brincar. Temos até o sol da manhã do amanhã. Antes que a carroça retorne.
Sobre o Autor

Livros publicados: POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? Crônicas, WS Editor e MENINO ESQUISITO, Poesia Infantil, WS Editor. Contato com o Autor: Pablo Morenno
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