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História de um músico do rei
por Terezinha Pereira
*
publicado em 31/12/2008.
Assim, à beira-mar, subindo e descendo morros, ele levava a vida a cantar e a tocar viola. Não demorou muito, uma porção de outros meninos e até gente grande quis com ele aprender a tocar. A mãe e uma tia, percebendo a queda que o menino tinha para música, quase mesmo sem tostão para o de comer, arranjaram para ele um professor de música. O mestre logo se encantou com o talento daquele garoto. Parecia-lhe um gênio, já sabia de todas as notas, emitia os mais belos sons. Mas... o defeito. Era quase negro. Descendente de escravos vindos lá da África. E pobre. Como um rapazinho assim poderia entrar nas igrejas para tocar e cantar? Sabe-se que, naquele tempo, os grandes músicos apresentavam seus melhores sons nas igrejas, em louvor a Deus.
Conhecedor do talento do moço, o mestre continuou insistindo com seus estudos. Arranjou-lhe um professor de latim, outro de filosofia_ alguns padres que não consideravam demais os defeitos de cor, de falta de riquezas. O jovem virou gente grande e, a cada dia, mais afinava as suas qualidades musicais. Então, já compunha músicas que agradavam a todos daquele lugar embelezado de mar e montanhas de pedra ou cobertas de verde. Porém, ciente de que seu pupilo, por ser pobre, neto de escravos, não alcançaria o reconhecimento merecido, o mestre se reuniu com a família dele. Precisavam dar uma oportunidade para que ele fosse reconhecido. Juntos decidiram que ele entraria para o seminário. Seria padre. Padre, sim! Se ele nunca pensara nisso. Ah! Era um jeito de ele poder, quem sabe, um dia, mostrar a todos o seu talento.
Em pouco tempo, ele se tornou o grande músico de uma igreja. Mas, mulato e pobre? Mesmo sendo padre, segundo vozes dos que prezavam os de pele clara e de linhagem nobre, aquele músico tão habilidoso poderia se apresentar nos mais nobres ofícios. Tais vozes chegaram aos ouvidos do bispo. E o bispo, ah, o bispo! Gentilmente, ele o convidou para dar aulas para homens que tinham o mesmo problema de cor, numa fazenda de sua propriedade.
Pouco tempo depois, o bispo e toda a sua irmandade foram mandados para outras terras. Como eram outros os mandadores, o padre músico, pobre e quase negro, foi convidado para dar aulas no conservatório. Tornara-se um grande mestre no piano. Regia corais de muitas vozes e instrumentos variados. Escrevia as mais complicadas peças, as que produziam as mais belas músicas.
Nesse tempo, vindos de além-mar, mudou-se para aquele lugar, rei, rainha, príncipes, princesas _ família inteira _ e mais o povo que vivia a seu redor para lhes servir do bom e do melhor. Diziam que vieram fugidos de um exército de inimigos, o qual queria lhes tomar o reino. Com a chegada de gente de tão grande nobreza, aquele lugar ficou em alvoroço. Os moradores, querendo ou sem nenhum querer, faziam de tudo para caírem no agrado do rei , da rainha e de sua corte. Em homenagem ao rei, e sua família, preparam uma grandiosa cerimônia na mais bela igreja do local. Que fosse acompanhada de boa música. As vozes! Vozes diziam que o rei apreciava música sacra harmoniosa, exibida com suntuosidade, a revelar grandes artistas.
Dizem que o rei de além-mar deleitara-se com os acordes emitidos pelo padre mulato. E pobre. Até mesmo havia se esquecido do famoso músico que sempre o servira além-mar e que não viera ainda para viver em sua companhia.
No entanto, como se sabe, mexericos é que nunca faltaram nesses lugares onde vivem reis, rainhas, gente poderosa e pessoas que gostariam de ser. Em pouco tempo, a rainha, quem sabe enciumada, pois seu marido gordo e bonachão estava sempre a ouvir as músicas do padre mulato e pobre, exigiu a presença do artista no palácio. Tivera a idéia de lhe fazer um desafio. Haveria de ser no dia seguinte mesmo. Ela estava ansiosa para ouvir-lhe dedilhar um piano. E ele, como poderia negar-se a uma palavra da mulher do rei?
À hora marcada, chegou o padre ao palácio. Nessa época, o músico de além-mar, o tal preferido do rei, já havia vindo para no palácio morar. A rainha, logo após os solenes cumprimentos ao padre mulato e pobre, solicitou ao músico de além-mar uma peça de autoria de um dos mais famosos músicos que ora se apresentavam por lá, a maior novidade do momento. O padre, sobressaltado, desenrolou e partitura e, quase sem voz, murmurou:
_ Vossa Alteza, nunca toquei esta sonata!
_ Mas, dizem que o senhor tira música como quem lê letra redonda... Sente-se, sente-se ao piano.
O artista obedeceu. Pois... Ordem de rainha. Dizem que, com timidez, o padre fez soar os primeiros acordes. Porém, a tecla do piano, linhas e códigos de partitura há muito lhe eram familiares. Em segundos, entregou-se de corpo e alma à tarefa que lhe exigiam. Em silêncio, boquiabertos, os ouvintes se viram arrebatados no turbilhão de sons da maviosa sonata. E, a rainha e o músico que lhe prepararam uma peça, oferecendo-lhe aquela peça não ensaiada para tocar, no final da audição, estavam pálidos, sem voz.
Histórias de reis, rainhas, príncipes e princesas e de alguns servos e populares que se cruzam ao acaso, costumam ter final feliz. Porém, o tempo feliz do padre músico durou enquanto o rei de além-mar por ali ficou. Nesse tempo, fora ele o músico do rei. E, por essa razão, durante esse reinado, aquele lugar à beira-mar tornara-se o cenário musical mais famoso de todos do lado de cá. Chegada a hora, quando souberam que o exército inimigo não mais ameaçava a corte, rei, rainha e familiares retornaram ao lugar de origem.
Pobre, mulato, mesmo padre amigo do rei, o qual já não mais por ali reinava, o grande músico envelheceu sem ver o fruto de seu trabalho. Morreu pobre, sem vintém. Seu grande legado ficou para nossos ouvidos. A História registra que ele deixou escrita a maior coletânea de peças, cerca de 240. Beleza pura, que permite fazer soar os mais belos e harmoniosos acordes. Segundo os musicistas, seus trabalhos assemelham-se aos dos mais famosos artistas de além-mar, até mesmo com as composições de Mozart. Há comentários de que outras 200 partituras se encontram desaparecidas. Perdidas?! Desviadas?!! Sei não. Certo é que sua história foi recuperada e sua grandeza de gênio da música, nos dias de hoje, é reconhecida e venerada tanto na parte de cá como do outro lado do mar.
(Inspirado no artigo de R. Mendes Ribeiro, "Um músico de D. João VI", publicado em 22/01/1922, na revista "Illustração Brasileira", órgão oficial comemorativo aos 100 anos de Independência do Brasil. Nesse artigo, Mendes Ribeiro fala da vida e obra do Pe. José Maurício Nunes Garcia, nascido no Rio de Janeiro em 22/09/1767 e falecido em 18/04/1830. A citada revista faz parte do acervo da Fundação Biblioteca Nacional- FBN.)
Sobre o Autor
Terezinha Pereira: Terezinha Pereira é romancista, contista, cronista, graduada em Letras, membro da Academia de Letras de Pará de MinasPublicações:
_ "Em confidência", romance publicado pela Mazza Editora, Belo Horizonte, 2000, premiado em concursos literários realizados no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais;
_ "Uma pianista numa noite branca..." , Caderno Literário de contos, 2004, pela Academia de Letras de Pará de Minas em parceria com o Jornal Diário;
_ Contos, na "Revista da Academia Mineira de Letras" (4 revistas);
_ Artigo, projeto de estudo do livro "Dom Quixote" para alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, publicado na revista "Presença Pedagógica", de setembro/2005;
_ JB Online, Café Literário: Colunista da Semana, 23 a 29/11/2005.
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