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O Enigma do Martelo

por Pablo Morenno *
publicado em 15/07/2006.

Quando seu Welter retirou das brasas um pedaço de ferro em fogo, fiquei imaginando onde andaria a alma da ferramenta que viria ao mundo. Como pode um sonho de enxada tornar-se realidade num pedaço de metal?

Conheci o ferreiro Welter num passeio à Joaneta, distrito de Picada Café, serra gaúcha.

Os dias passam. O martelo de José Welter continua batendo a memória. Quase oitenta anos, desde os dezenove moldando metais, seu Welter conserva a ferraria e, embora ninguém mais lhe peça nenhuma ferramenta, desfolha seus saberes a quem desejar.

Não há muito tempo, os homens precisavam dos ferreiros para tirar sustento da terra. E como quase todo mundo cultivava a terra em Picada Café, quase todo mundo precisava de seu Welter. De suas mãos saiam as ferraduras dos cavalos, as rodas de carroças, as enxadas, as pás, as foices, os pinos de canga e outros objetos. Coisas que hoje emanam de grandes indústrias eram, há pouco, frutos artesanais de fogo e martelo.

À sombra do galpão de madeira, seu Welter demonstra o ofício. Tudo parece lento. Devagar para a vida divagar. Primeiro, acende-se o fogo, depois se o atiça com um fole movido a braços. Fogo maduro, põe-se o lingote de ferro para tornar-se brasa. O ferro incandescente sai do fogo tinindo seu sonho. Mas, estaria o sonho no ferro ou no coração do ferreiro?

Enquanto observava o sofrimento do lingote sob os golpes do martelo, mudei-me dos olhos para os ouvidos. Percebi ritmo nos sons. Surpreso, identifiquei batidas úteis no ferro, e outras “desperdiçadas” na bigorna. E não eram aleatórias. Respeitavam uma melodia singela e tinham andamento compassado. Diferentes espessuras da bigorna e do lingote emitiam sons específicos e planejados. Usando como intérprete um dos alunos que me acompanhavam no passeio, perguntei a Seu José. Andaria eu ouvindo assombração, seria casualidade, ou seu Welter coordenava intencionalmente as batidas?

Não. Não era visagem. Era assim mesmo, respondeu. Aquela era sua música de golpear o ferro. Todo bom ferreiro, nos disse, inventava um “algo mais”, um jeito melodioso de transformar matéria informe em ferramenta. Seu Welter respondeu em alemão e eu entendi sem precisar a ajuda do menino intérprete. Seu sorriso, seu gestos, sua surpresa. O menino apenas me traduziu uma pequena parte de seu discurso. “Ele disse que você foi o único turista que percebeu que seu ritmo de bater o ferro”.

Eu sempre achei que a forma do ferro vinha apenas de seu esmagamento à alta temperatura, entre a bigorna e o martelo. Que, ao fórceps das batidas e pelo fogo, as coisas eram torturadas até o nascimento. Estava errado. Seu Welter, em sua simplicidade, revela o enigma da cultura, o segredo contido naquilo que deveria ser o jeito humano de inventar. Forma ao ferro pela força é coisa de qualquer máquina. A alma da coisa feita, porém, só tomará o corpo do metal, através daquele “algo mais”. Para o ferro transmutar-se em ferramenta, não bastam força e fogo, é preciso música. É na música que o ferreiro encontra sua identidade. É com ela que o homo faber consegue salvar-se da alienação que -como disse Marx - faz, dos operários em linhas de produção, seres estranhos às suas criaturas. O homem, à simbólica imagem e semelhança de Deus, também cria. Mas, nesses casos, não consegue encontrar imagem e semelhança nas coisas criadas. A semântica da vida sofre uma ruptura com desastrosas conseqüências.

As marcas do homem no mundo são plasmadas pela energia de suas mãos e o suor de seu rosto. Para melhor interpretá-las há que se abrir os ouvidos à música de seu espírito, mais onda sonora e menos força. Em cada trabalho humano, o homem que o faz gasta um pouco de si mesmo. De corpo e espírito. O ser humano, que deu utilidade à pedra lascada e depois à pedra polida, estabilizou-se na fundição. Todavia, moldar o metal é insuficiente. Como Pinóquio, toda coisa feita por homens anseia ganhar uma alma humanizada.

Na música do ferreiro, alguma coisa sai de seu coração, desce por suas veias e músculos e se encarna em porções de ferro. Como não tenho uma palavra exata, uso “alma”, que já tenho.

Sobre o Autor

Pablo Morenno: Pablo Morenno nasceu em 21.05.1969, em Belmonte, SC, e mora em Passo Fundo, RS. É licenciado em Filosofia e bacharel em Direito. Também é professor de Espanhol em cursinhos pré-vestibular, músico e servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região, e pinta nas horas vagas. Escreve uma coluna semanal de crônicas no jornal O Nacional, de Passo Fundo RS, e Nossa Cidade de Marau-RS. Colabora com os jornais Zero Hora, Direito e Avesso, e com sites de leitura e literatura. É Membro da Academia Passofundense de Letras, ocupando a cadeira cujo patrono é Érico Veríssimo. Como animador cultural e escritor, participa de projetos de leitura do IEL- Instituto Estadual do Livro do RS e de eventos literários no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Com suas palestras interdisciplinares e descontraídas, utilizando-se de histórias e da música, conversa com crianças, jovens, pais, professores e idosos sobre a importância da leitura e da arte na vida.

Livros publicados: POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? Crônicas, WS Editor e MENINO ESQUISITO, Poesia Infantil, WS Editor. Contato com o Autor: Pablo Morenno

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