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RESENHAS
Maduro já no berço
Ronaldo Cagiano*
Com um romance e um livro de contos, Lima Trindade mostra vigor em sua estréia
De pequenas editoras em diversas regiões do país surgem publicações que confirmam a tendência, na atual literatura brasileira, de explosão do conto, gênero que tem apontado autores de inegável carpintaria.
Entre as novidades promissoras, Lima Trindade, brasiliense de 38 anos, há alguns residindo em Salvador, estréia nesse cenário com dois bons livros: a novela Supermercado da solidão (LGE, 124 págs., R$20) e os contos de Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê, 168 págs., R$ 25).
Supermercado da solidão tem como centro a solidão urbana e humana e os conflitos próprios da contemporaneidade. Narrativa construída com economia de meios, opta pelo rigor da linguagem, delineada por períodos curtos e secos. Ambientada na capital do país, a história se alterna entre Bernardo e Cléo. Ele, ganhador de um cobiçado prêmio de R$ um milhão, que, contrariando a ambição da família e as pressões externas, despoja-se das naturais ambições consumistas e desiste de gastar o que recebeu. Ela, uma funcionária pública viciada e triturada pela engrenagem laboral, refuta a vida burocrática e sem perspectivas e quer partir para outra, mudar, procurar um caminho mais prazeroso. Sobre essas duas realidades, Trindade cria uma atmosfera em que os personagens vivem pequenas tragédias interiores e dramas psicológicos, com o deflagrar de conflitos, disputas pessoais, confrontos íntimos, a busca insaciável do poder e a luta contra uma doença. Um emaranhado de situações se sucede e compõe um mosaico, ao mesmo tempo delicado e poético, das difíceis relações humanas e sociais, dos desencontros e frustrações, traduzindo as experiências e o destino de cada um.
Influenciado por suas afinidades literárias e filosóficas, o autor adota de forma sutil os recursos da intertexualidade para encetar um diálogo com a filosofia e a ética, realizando uma profunda reflexão sobre o esgarçamento dos valores na sociedade contemporânea.
Com Todo Sol mais o Espírito Santo, ele reafirma sua versatilidade na utilização de amplos recursos verbais, como também a segurança na construção de seu plano ficcional, com amplo domínio técnico. Não há nesses contos aquele impulso, como se constata em muitos autores novatos, para impressionar o leitor por uma pretensa quebra de paradigmas ou uma falsa ruptura de cânones. A prosa refinada e densa, às vezes mitigada por um certo viés de humor e ironia, comporta uma inquietação, que se transfigura nas angústias permanentes do autor e dos personagens, e não na implosão da forma.
Trindade aproveita o caldeirão de possibilidades temáticas dos últimos 20 anos de história mundial, com seus totens e ícones, para fazer um mapeamento afetivo de nossas experiências pessoais e do imaginário social. Reproduz o inconsciente de sua geração, que viveu o rock, a renovação na literatura, no cinema e no teatro, as lutas das minorias, a liberação sexual, a mudança de costumes, o embate ideológico e outros conflitos. E mostra como moral e religião se digladiam com o hedonismo, a exacerbação do eu e a liberdade, desafiando as couraças e imposições sociais. São contos que remetem a uma crítica percepção do último fin de siècle, em confronto com as expectativas ou frustrações de uma nova era, perdida entre os referenciais estéticos, políticos e críticos do passado e o isolamento individual, numa sociedade que instaura o reinado do consumismo e os fetiches do deus mercado, impondo novas aflições à carne e ao espírito.
Lima Trindade é um autor cioso de seu ofício, como também vem se dedicando com esmero à ensaística e à crítica literária em seu site, www.verbo21.com.br. Antenado com as novidades, não teve pressa em surgir nesse pressuroso e concorrido terreno em que obviedades incensadas como novidade não resistirão à peneira do tempo e ao darwinismo da crítica. Sua estréia em dose dupla vem com a necessária maturidade e confirma que ele tem tutano e fôlego novos e ousados vôos, como nos antecipam seus contos inéditos, que incluirá no próximo livro, Corações blue & serpentinas.
Sobre o Autor
Ronaldo Cagiano:
De Cataguases, cidade mineira berço de tradições culturais e importantes movimentos estéticos, surgiu Ronaldo Cagiano. É funcionário da CAIXA. Colabora em diversos jornais do Brasil e exterior, publicando artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos, tendo sido premiado em alguns certames literários. Participa de diversas antologias nacionais e estrangeiras. Publica resenhas no Jornal da Tarde (SP), Hoje em Dia (BH), Jornal de Brasília e Correio Braziliense, dentre outros. Tem poemas publicados na revista CULT e em outros suplementos. Obteve 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos "Dezembro indigesto”.
Organizou também várias antologias, entre elas: Poetas Mineiros em Brasília e Antologia do Conto Brasiliense.
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