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RESENHAS

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A literatura dos deserdados

Adelto Gonçalves*

Que as sensíveis e amargas imagens de Brasília que se vê em Concerto para arranha-céus (Brasília, LGE Editora, 2004) sejam obra de um mineiro de Cataguases que tem praticamente a idade da cidade e nela vive há 26 anos é algo que não nos deve surpreender. Brasília, capital de todos os brasileiros desde 21 de abril de 1960, foi construída por candangos que se largaram de todo o Brasil para participar de sua construção, mas foi erguida mesmo por visionários mineiros como o presidente Juscelino Kubitschek, Israel Pinheiro e outros. Aliás, no dizer de seu projetista, o arquiteto Oscar Niemeyer, a cidade é uma continuação do conjunto arquitetônico da Pampulha, bairro de Belo Horizonte, como se lê no livro que o historiador Ronaldo Costa Couto, outro mineiro, escreveu em homenagem ao ex-presidente, Brasília Kubitschek de Oliveira (Rio de Janeiro, Record, 2001).

Brasília, segundo seus idealizadores, era para ter 500 mil habitantes na virada do milênio, mas, hoje, o aglomerado urbano do Distrito Federal já passou dos dois milhões e, se adicionarmos o Entorno, chega a mais de três milhões. Um espanto. É um microcosmo do Brasil, com suas relações na base da força bruta, desigualdades sociais, dominação, mandonismo, altas picaretagens e a política miúda em que os interesses coletivos só servem, muitas vezes, para mascarar os lucros que vão para os bolsos daqueles que conhecem bem o jogo de mão dupla do poder.

Com tamanho caldo de cultura é natural que essa sociedade também produza seus intelectuais, poetas, contistas e romancistas que não podem assistir a esse dia-a-dia indiferentes. Um desses intelectuais é Ronaldo Cagiano que, com os relatos de Concertos para arranha-céus, vem afirmar-se como um dos mais mais argutos observadores dos dramas cotidianos de Brasília, que nunca chegam ao grande noticiário dos jornais e que, quando chegam, é para ocupar apenas as páginas policiais.

Metrópole desumana, que se destaca por seus edifícios envidraçados, seu ar seco que deixa um permanente nó na garganta e seu poder de tornar insensíveis aqueles que assumem seus postos estratégicos, Brasília é retratada por um dos mais consistentes dentre os narradores contemporâneos brasileiros, como já percebeu o poeta Claudio Willer, responsável pela apresentação deste livro. Cagiano, depois de publicar cinco livros de poesia, um de contos, uma novela juvenil e mais um volume em que reuniu artigos e resenhas, chega ao seu segundo livro de contos com uma prosa madura, vigorosa e extremamente precisa.

Em “Óbito 75.888”, dedicado ao escritor Moacyr Scliar e que abre o volume, Cagiano transforma em conto o drama final do Samuel Rawet, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, mas nascido na Polônia, em 1929, e imigrado para o Brasil em 1936. Judeu, Rawet, autor de Contos do imigrante (1956) e outros livros inesquecíveis, mas nunca suficientemente valorizados pela crítica, criou-se no Rio de Janeiro e, depois, formado engenheiro, fez parte da equipe de Niemeyer, que construiu Brasília.

Morreu em 1984, sozinho, sem dinheiro, incógnito funcionário de uma repartição ministerial, sem que ninguém tivesse se lembrado dele: só depois de uma semana de morto é que chamou a atenção pela estado adiantado de putrefação de seu corpo. Com ironia, o autor recorda que, no dia seguinte, 26 de agosto de 1984, os principais jornais brasileiros não trouxeram uma linha da morte do grande escritor: o obituário do dia era todo reservado a Truman Capote, um dos ícones do new journalism norte-americano.

No conto que dá título ao livro, Cagiano traça um perfil da cidade: “orquestra de motores, Babel de tipos com sua artilharia de inquirições: engravatados, bêbados, mendigos, office-boys, entregadores de pizza, despachantes, funcionários públicos, prestadores, garotas de programas, michês, camelôs, desempregados, condutores de vans, diabéticos, cancerosos, soropositivos, gente que passa em meio à pressa febril de tudo urgenciando as coisas”. O texto é ágil, veloz como os carros que cortam as superquadras sem esquinas e, logo, deixam a arquitetura moderna para entrar na antiarquitetura, do moderno ao arcaico em poucos segundos.

Concerto para arranha-céus, porém, não é só Brasília: há diversidade de temas, como observa Willer. Os enredos tratam de diferentes épocas e lugares, desde a Brasília do começo do novo milênio a Cataguases e as metafóricas Santa Rita de Duas Pontes e Curralópolis do início da década de 60. Claro, Cataguases, Santa Rita e Curralópolis são microcosmos da grande metrópole focalizada em “Paralelo 16: olhar 43”, a Brasília das safadezas políticas, do jogo rasteiro pela sobrevivência em cargos públicos em que só os mais sórdidos é que alcançam os postos mais altos: “(...) E eu estou aqui, nesse momento Halley, epifania do caos, lá fora escuto falar de reforma disso, reforma daquilo, o Brasil vai mudar, o Brasil não mudou, e na passarela que liga o Conjunto Nacional ao Conic vejo a imagem do Brasil real: pedintes, ambulantes, mendigos, cegos, mutilados, a tristre e gorda velha com elefantíase, revelações (e reverberações) de uma sociedade doente, doente além da dor física; a cidade está ali, o País está ali, é o mundo vivo nesses estandartes da exposta miséria humana, que já não comovem nem incomodam Patrícia, a mim, aos outros, deficientes, seus aleijões, suas feridas como um troféu em busca da misericórdia, da caridade oficial, da indulgência, do que não virá (...)”.

Como se vê, se Brasília já serviu para discursos altissonantes que diziam de uma nova civilização que nasceria no Planalto Central, desta vez, o tom é outro, sussurrado, lamentoso, que nasce da falta de perspectivas para um país em que a violência e informalidade tornam impossível a lógica capitalista que deu certo em nações mais avançadas.

Aqui cada vez se torna mais difícil aos segmentos restritos da sociedade usufruir o que obtiveram com seus altos níveis de renda: a mão-de-obra despreparada e analfabeta logo cai no desespero e vira do avesso receitas econômicas neoliberais que deram certo no mundo industrial, ainda que semi-alfabetizados consigam romper as barreiras e cheguem até a dirigir os destinos da nação. No país dos contrastes, o agravamento da crise social cresce na mesma proporção em que aumenta a concentração de renda. Um quadro que faria a Rússia de Fedor Dostoievski parecer o melhor dos mundos.

Willer compara os contos de Cagiano aos de João Antônio por causa da indignação, do senso crítico agudo, do desprezo pelas concessões. Nelson Oliveira na contracapa também lembra de João Antônio e acrescenta Samuel Rawet e Luiz Ruffato. E não exageram na comparação. Todos vêem o mundo de baixo, das classes sociais mais oprimidas. E fazem literatura de alto nível porque saída das entranhas da vida.
__________________________
CONCERTO PARA ARANHA-CÉUS, de Ronaldo Cagiano. Brasília, LGE Editora, 151 págs. 2004. E-mail: lgeeditora@lgeeditora.com.br (www.lgeeditora.com.br)

----- resenha originalmente publlicada no suplemento "Das Artes Das Letras" do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto - Portugal

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Sobre o Autor

Adelto Gonçalves: *Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).


E-mail: adelto@unisanta.br

 

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