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Um poeta em seus claros caminhos

Francisco Carvalho*

Joanyr de Oliveira, poeta nascido nas Minas Gerais, é possuidor de vasta fortuna crítica, razão pela qual não precisa ser apresentado ao distinto e reduzido público de leitores de poesia. Poeta que, por todos os méritos que possui, deve ser colocado entre as figuras mais representativas de sua geração, é ele, sobretudo, uma daquelas pessoas detentoras do raro privilégio de terem sido visitadas pelo "Espírito de Minas".

Em Tempo de ceifar (Thesaurus Editora, Brasília, 2002, 399 p.), encontramos as multifaces de um poeta no pleno exercício de todos os recursos expressivos da linguagem. Da linguagem como expressão dos pendores estéticos consubstanciais à natureza e à condição humana ou como pretexto para uma visão abrangente do que acontece (ou deixa de acontecer) no mundo.

Num conjunto de poemas dessa amplitude pluritemática, a primeira impressão do leitor é a de total incapacidade para assimilar toda a riqueza semântica e imagística e toda a carga simbólica subjacentes na linguagem multifacetada do Autor. Até porque seria preciso atingir o cerne da palavra "em seus ângulos mais lúcidos". São tantos os recursos utilizados pelo poeta, tão numerosas as alternativas formais presentes na complexa textura de sua poesia, que dificilmente o leitor escolherá as opções mais adequadas para entrar na atmosfera mágica dos poemas.

Visto que "a beleza é coisa da poesia", como nos ensina o grande poeta Gerardo Mello Mourão, que ao longo da vida vem seguindo obstinadamente o "Rastro de Apolo", o melhor que se tem a fazer, diante dessa portentosa galáxia de poemas, é abrir o livro em qualquer lugar, pois aí estará, sem dúvida, "a beleza para nos livrar da verdade", segundo o entendimento de Nietzsche.

Apraz-nos oferecer alguns breves exemplos à consideração do leitor: "A noite espreita como fera/ o corpo efêmero./ A noite espera" (p.146); "A palavra submersa/ nos gumes da noite./ mais volverá canto e pássaro/ (...) sobre os navegadores da morte" (p.238); "À hora dos soluços/ exumarei os olhos/ em claros caminhos" (p.239); "A poesia cumpre o seu mister/ mas a noite é cega e fria./ A noite continua na terra" (p.242); "Meu reino é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos" (p.249); "As mãos tecem o poema (...) as mãos sempre insones/ em conchas misteriosas" (p.61). Aí estão alguns poucos exemplos de beleza poética para o leitor hedônico, que não procura na poesia um relatório linear dos acontecimentos, mas uma verticalização dos fatos e problemas humanos captados pelas antenas sensíveis dos poetas.

Nos versos acima mencionados, Joanyr nos fala do seu reino predileto: "meu reino é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos". Vislumbra-se, aqui, talvez, uma longínqua ressonância destes versos de Cesário Verde: "Amo, incessantemente, os ácidos,/ os gumes e os ângulos agudos". Mas o que importa destacar é a veemência da afirmação emblemática do poeta, cujo reino "é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos". Afirmação que por si só vale como um atestado de fidelidade aos princípios que norteiam o múnus poético.

"A palavra/ em seus ângulos mais lúcidos" pode ser interpretada de várias maneiras, a depender, obviamente, da cosmovisão do leitor. Mas é fora de dúvida que a palavra, tal como definida pelo poeta, pode ser a palavra despida dos falsos ornamentos da retórica. Ou a palavra visitada pelo fulgor repentino do "insight". Ou a palavra iluminadora, abrasada pelo esplendor profético, a nos desvendar as fronteiras da transcendência e da metafísica. Pode ser, ainda, uma senha para entrar no universo ludimágico do poeta.

A excelente introdução da escritora Branca Bakaj aborda algumas das questões mais importantes relacionadas com a forma e os conteúdos expressivos da poesia de Joanyr de Oliveira. Destaca-lhe "o domínio de todas as formas líricas", os exercícios lúdicos, "todos os metros, todos os ritmos" presentes na linguagem literária do poeta. E ainda se refere a maneira eficaz com que ele se desincumbe da artesania de seus poemas.

Celebrando o amor, maldizendo as "ocas retinas" de burocratas e "juízes rotundinhos e iníquos"; ou dialogando com o prisioneiro Nelson Mandela, "do coração de um pássaro em chamas"; ou, ainda, questionando a injustiça institucionalizada, que está na raiz da clamorosa problemática social, o poeta Joanyr de Oliveira é sempre uma voz a serviço dos "claros caminhos" da beleza e da solidariedade. Uma voz à escuta dos ruídos da noite, ruídos exaustos saídos das entranhas da dor humana. "Nascerão claros fonemas/ na madurez do meu tempo:/ direi ao fundo das almas/ que às coisas todas me irmano".

Admirador confesso de Octavio Paz, uma das expressões mais altas da poesia ocidental, Joanyr de Oliveira deixa transparecer, em legado poético, que "os poderes secretos da linguagem coloquial é a grande descoberta" da modernidade nos domínios da lírica. O que significa dizer: "fazer do poema um monólogo sinuoso, no qual a reflexão e o lirismo, o canto e a ironia, a prosa e o verso fundem-se e separam-se, contemplam-se e tornam a se fundir" (Octavio Paz, Os filhos do barro, Ed. Nova Fronteira, Rio, 1984, p. 126). Da mesma forma que o grande lírico mexicano, o poeta mineiro recorre aos "ângulos mais lúcidos da palavra" para testemunhar as grandezas, triunfos e quedas do ser humano no mundo.

O poeta não se ilude. Sabe que ao lado da beleza germina a podridão do pântano. Poderia dizer como o filósofo: "Nada do que é humano me é estranho" . O amor, a morte, a infância, a espantosa precariedade humana, o homem, eterno comensal no banquete dos conflitos suicidas que ceifam vidas preciosas - tudo isso se inscreve no tecido fecundo dos poemas de Joanyr de Oliveira. O poeta é taxativo ao dizer que "O ouro suja, é câncer./ E o poder é uma sombra". Talvez uma sombra igual à do corvo de Pöe, pousado obscenamente no busto de uma deusa.

Sobre o Autor

Francisco Carvalho: Francisco Carvalho é Poeta, ensaísta, funcionário da Universidade do Ceará. Autor de Dimensão das coisas, Memorial de Orfeu, Os mortos azuis, Movimento e Memórias do espantalho.

 

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