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A vida escorre pelo ralo

Jorge Pieiro*

'Foi o fim do espelho e o início do torcicolo'
(Veronica Stigger)


Quando Martim Heidegger expressou que a linguagem seria a casa do ser, talvez não imaginasse que, no acordar do século XXI, esse lugar se tornaria tão beligerante, que alguns inquilinos transformariam a vida em espaço para trágicas lógicas. É óbvio que pensar assim é tornar infame o pensamento do filósofo. Mas, como não nos permitir a deformação, se o efeito provocado por esses tempos obtusos procriam essa mutação de idéias?

Através dos tempos, a literatura produziu violências contextualizadas, imaginadas, idealizadas até. Podemos afirmar que não há nada de novo na linguagem radical de alguns autores desta alta modernidade. No entanto, desde uns tempos, mais especificamente, desde a década de 70, no Brasil, a linguagem que reproduzia a violência tornou banal as próprias atitudes e passou a reproduzir a violência da linguagem.

Na verdade, somos todos trágicos e permissivos, quer calemos, quer gritemos, quer experimentemos a correta política dos tempos. O ser humano nunca desistiu desses espetáculos de sofrer. Na outra face da moeda, vivemos também nossos momentos de comédias. Somos assim, inevitavelmente, tragicômicos. Porém, não são tantas as vezes que demonstramos essas condições. Pouco a pouco, é que quebramos os espelhos e passamos a desconfiar do nosso umbigo e, assim, perdemos a inocência, se é que, algum dia, fomos realmente inocentes.

Não causam mais estranhezas a representação ou a imitação de uma legião de personagens doentios e suas fobias, a escatologia, a tragicidade, a deformidade dos seres, a profanação de atos, a não ser pela maneira como esses desvios são tratados pela linguagem. Se apontarmos para algum epicentro desse caos, a crueldade absurda pode ser originada das conspirações da gaúcha Veronica Stigger (1973), que estréia com O trágico e outras comédias (7Letras, 2004). Obra, diga-se de passagem, já publicada em Portugal, pela editora Angelus Novus, antes da edição brasileira.

O pequeno livro de contos pode não manter compromisso com uma estética da sublimação ou com o sentimento muitas vezes enojante da parcela pia e hipócrita da sociedade ou com a insinuação bajulatória ao leitor. Pelo contrário, Veronica Stigger não concede, a não ser a sua linguagem desafiadora e perversa. Ato que chega, algumas vezes, a tornar-se gratuitamente bizarro ou apenas grotesco.

Assim, distraindo-nos de alguns deslizes, caso do texto 'Maria Aparecida Boca-Suja', desatinam-se narcisistas de carteirinha, tal como a personagem que some dentro do próprio umbigo ('Janice e o umbigo'); ou aquele outro, homossexual, que se curva sobre o próprio pênis ('Ex-puto'); um jornalista que se deforma cada vez que fala com estranhos ('O mal de Mário Sérgio'); ou o narrador profano-escatológico de 'A chuva', que poderá chocar mentes pudicas, em toda sua articulação, principalmente no seu desfecho: 'No sétimo dia, os caralhos descansariam'.

Veronica Stigger surge como escritora supostamente hiper-realista; diriam outros, maldita. Mas não finquemos essas pechas: se há algum esboço de hiper-realismo, não é o consensual, mas aquele hiper-realismo que dessacraliza qualquer condição, inclusive a de ser mulher, por exemplo; se houver necessidade de um enquadramento entre pares malditos, esqueçamos, pois ela assim deve agir apenas para declarar o hálito do mundo como se fosse o de uma imensa cloaca, ou para denunciar o grotesco da vida, ou para fazer do ser humano uma irônica marionete de sua própria e ridícula condição. Se não é nada disso, tudo não passa de uma grande comédia, e nós, tragicamente somos engolidos pelo nosso erro.

Desencontrando-nos do pensamento de Jorge Marmelo, crítico português, não concordamos em classificar a autora como marginal dentro de uma vertente da literatura brasileira que se lança a verdades, mesmo que dolorosas, canhestras ou espalhafatosas, senão, como apenas uma denunciadora do pensamento escuso e nosso de cada dia. Concordamos, de outra forma, com a idéia do crítico em pensar que a obra da escritora tem os condimentos ideais para transformar-se em objeto de culto, como as produções de outro autor que lembramos, dadas a devidas diferenças, Marcelo Mirisola.

Da mesma maneira irônica que desmantela o olhar enviesado do leitor, Veronica Stigger no último conto, melhor dizendo, em derradeira micronarrativa - 'No corredor' -, parece jurar que se exime de qualquer culpa, que não tem nenhuma intenção de destruir os sonhos ou a respiração de qualquer vítima que ponha os olhos pelas páginas do livro. Parece... porque, inevitavelmente, o espelho já estará partido, e tudo não passará de uma forma banal de destruir qualquer imagem.

Sobre o Autor

Jorge Pieiro: Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.

 

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