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O Florista

Deonísio da Silva*

Nilza Amaral estreou na década passada e seus livros mostraram uma ficcionista corajosa, capaz de enfrentar temas tidos como inconvenientes sem nenhum medo. E com talento. Sem desprezar as perigosas ligações que a literatura mantém com a sociedade em qualquer tempo, não submeteu sua prosa a nenhum dos cânones ideológicos vigentes, alguns dos quais muito sedutores, como o de justamente evitar certos temas, como os das sexualidades, com o fim de adequar seu texto aos estreitos limites desta pseudoliteratura que infesta nossos circuitos escolares em pleno período de formação do leitor, obra que já resultou até em editoras especializadas no rebaixamento dos padrões literários.

O Florista abre com o fascínio que a visitante sente pelo profissional que cuidadas flores:"um homem que vendia flores para a vida e para a morte", que aos poucos vai se tornando "imprescindível a ponto de não poder mais tolerar a existência sem ele".Temos um ponto de vista cheio de delicadezas, que nos revela um mirante sutil de onde podemos ver de novo a condição feminina, sem os atrapalhos costumeiros que, inconscientemente, sempre têm mutilado o nosso olhar. A narradora usa nomes de flores como indicativos dos estados de espírito da visitante e do que imagina na parceria com o florista. Chegarão os dois a um amor-perfeito?

Em outra cena, já nas ruas em meio a contestações políticas:"meninas de saias curtas e pernas compridas entregam-me rosas brancas com mensagens de paz".Um pouco adiante, outra cena de interiores: "a empregadinha doméstica entrega seus lábios carnudos à exploração do entregador de pizza (...) Amanhã talvez seja o padeiro a gozar de seus favores e depois de amanhã... um outro amante efêmero...". A narradora faz tudo passar por seu crivo de olho armado e conclui assim a cena que presencia: "e de amanhã em amanhã vive a donzela seu tempo de vida experimentando prazeres".

A narradora recolhe-se à torre de marfim onde vive e agora são os conselhos de sua avó que reboam aprovando os amores solitários tantas vezes praticado em sua adolescência profunda: "não faça isso menina, além de câncer no útero você não poderá ter filho". Para os meninos, diziam que as mãos ficariam cabeludas, como escreve Ignácio de Loyola Brandão. É impressionante como, em poucas palavras, Nilza Amaral é capaz de vincular as palavras de sua avó aos tradicionais terrores das sexualidades proibidas. Proibidas, mas praticadas, porque a mecânica das interdições busca antes coibir a expressão das heresias sexuais do que a sua prática.

"Tenho paixão pelo florista por ter eu o nome de uma flor?" Nilza Amaral fez do tema de sua novela um sangue que se espalha por todas as veias e artérias de suas tramas. Os nomes, os perfumes, e as lendas que envolvem camélias e tulipas formam o cenário das ações, que Penélope, paciente, sabe tecer em cada capítulo. Com a mesma pertinácia vincula as lembranças de menina, vividas na pequena cidade, às cenas violentas que presencia na metrópole em que veio parar. Assim, a tentativa de estupro que a menina de dez anos sofreu da parte de um velho tarado deflagra na memória o cheiro de erva-doce.

Nilza Amaral sabe conciliar nos trechos em que a alusão à sexualidade é inevitável o bom gosto e o atrevimento. A cena em que Tulipa é deflorada – veja-se a conotação da jardinagem outra vez – pelo florista é uma das mais belas descrições deste ato e uma das primeiras na literatura brasileira a combinar nossa herança naturalista com um refinamento quase florentino de linguagem. Em nenhum momento a narradora cede à vulgaridade, esta tentação que se tornou universal nesses tempos em que as descrições do ato sexual transformaram-se no comércio frio do vídeo caseiro. Como se sabe, ainda que a pornografia se especialize em empacotar e vender o que foi proibido, o desejo é mais do que ela ousa apontar. E a narradora reflete: "por que o desejo, como um condenado, tem de esconder-se sob o véu negro em lugares questionáveis onde fatalmente acabará fenecendo e talvez tenha de ser embalsamado como um cadáver?".
Com esta novela, Nilza Amaral vem nos dar uma amostra de que se a idade não melhora nada, como disse Simone de Beauvoir, para os escritores a experiência vivida é um precioso patrimônio – será um matrimônio, no caso das escritoras? – indispensável à hora da criação.

A novela de Nilza Amaral parece nos lembrar sempre que o saber vindo de sua leitura está longe daquele produzido pela destruição do objeto do conhecimento .Se o legista precisa de um cadáver, onde possa ancorar seus conhecimentos, o ficcionista precisa do homem vivo, fazê-lo confidente, levá-lo a expressar-se por todos os sentidos. Pois o romance moderno não pode limitar-se a pôr o microfone à boca do personagem. Tornou-se indispensável chegar ao inconsciente. E como se sabe a literatura chegou ao inconsciente bem antes de Freud. É de lá, desse território obscuro, cheio de mistérios que os personagens de Nilza Amaral nos falam.

Sobre o Autor

Deonísio da Silva: Escritor e professor da Universidade Estácio de Sá, doutor em Letras pela USP e autor dos romances: A Cidade dos Padres, Orelhas de Aluguel, A Mulher Silenciosa e Avante, Soldado: Para Trás, entre outros livros. Este último foi contemplado com o Prêmio Internacional Casa de las Américas, traduzido em outros países e também publicado no Brasil

Conheça seu mais recente romance: GOETHE E BARRRABÁS

 

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