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Bolívia do meu coração
por Urda Alice Klueger
*
publicado em 29/12/2005.
Sobre aquela primeira travessia eu escrevi um livro que anda por aí – na verdade, saíra da minha cidade, no Brasil, atrás de Machupichu, e a Bolívia fora quase que como um acontecimento inesperado no meio do caminho – mas como ela me cativou, ah! QUANTO me cativou! Naquele 1993 a Bolívia era um país de crianças gordas, de índias gordas, de cachorros gordos, pátria da mais antiga cidade construída no mundo[1] - eu era bem mais inocente do que sou hoje, mas só o tamanho dos cachorros gordos que andavam atrás das suas coloridas índias que levavam bebês presos às espaldas já me alertava que naquele país, no mínimo, se comia bem, apesar da grande secura reinante nos altiplanos e outras dificuldades da natureza. Na verdade, uma das coisas que mais me espantou, na ocasião, era como se comia pollo[2], lá - eu me criara num Brasil onde se comia um, talvez dois pedaços de galinha numa refeição, e a abundância da comida boliviana me espantava: lá, numa refeição, se comia ou meio, ou um pollo inteiro, com arroz de açafrão e outras coisas.
Também a indiferença comercial das impassíveis índias que nos encantavam com o seu artesanato e outras coisas vendíveis era impressionante: nunca uma colorida índia demonstrava ansiedade em vender – ao contrário, até procurava fugir da gente quando percebia que queríamos fotografá-la, etc. Lembro bem de uma parada de ônibus, em algum lugar ainda abaixo dos Andes, onde havia uma índia muito linda vendendo tangerinas num carrinho-de-mão. Ela, seu bebê e suas tangerinas eram tão bonitos que a gente automaticamente pegava a máquina fotográfica, mas não houve jeito de que fazê-la aceitar fazer uma pose – preferia não vender as tangerinas a se expor para esses tais de turistas. Era direito dela. Roubei-lhe uma foto de costas, só o bebê e as tangerinas.
Daí voltei onze anos depois. Vinha de Cusco/Peru, e poderia ter facilmente voado até São Paulo e estar em casa em poucas horas, mas não queria perder de estar um pouquinho na Bolívia, mesmo que fossem apenas aqueles três dias que foram possíveis, e voei de Cusco até Santa Cruz de la Sierra, com comprida escala em La Paz, onde permaneci boa parte do dia no aeroporto.
Sabe como é aeroporto, é lugar freqüentado por turistas internacionais ou homens de negócio vestidos de mauricinhos, normalmente, bem alheios ao que esteja acontecendo no país, de verdade. Até achei uns brasileiros do Rio Grande do Sul numa sala da Internet que, quando me souberam simpática àquele país, demonstraram algo que deveria ser asco por uma loira que podia gostar de gente assim índia e sua história cheia de golpes-de-estado e maldades feitas pelos invasores europeus. Devo tê-los olhado, também, com desprezo, enquanto via meu correio eletrônico, porque aquele contato não frutificou em nada que prestasse. Nem sei por que lembrei deles agora.
Acontece que num aeroporto também tem a gente de lá, os serviçais, a gente que varre, que cuida, que faz comida, que vende jornal, e não era nada difícil achá-los pelas suas caras de índio. Então fui me insinuando, uma palavra cá, uma palavra lá, e daqui a pouco tinha criado uma tribo muito legal, que se encantava que eu sabia que “no outro outubro” eles tinham deposto Sanches de Lozada, aquele presidente títere, que sequer falava quíchua ou aimara, e que pronunciava o espanhol com acento estadunidense, bem servo do Império do Capital Internacional.
Se Sanches de Lozada tinha sido deposto no “outro outubro”, isto queria dizer que a gente estava em outubro de novo – e justamente naquele dia em que estava em La Paz fazia 37 anos que o Che tinha sido assassinado pelas autoridades bolivianas! E quando fui almoçar no caro restaurante do aeroporto, já tinha sido tão bem “sacada” pelos bolivianos que junto com a sopa o garçom me trouxe um jornal sobre o assassinato do Che, jornal cheio de detalhes que eu não sabia e de fotos que eu nunca tinha visto. Fiquei doidinha, queria aquele jornal, que achei que era um jornal clandestino que o garçom me mostrava em grande confiança. Não, não era. Era apenas o suplemento do principal jornal de La Paz, e o garçom me disse que poderia comprar quantos quisesse na banca, ali pertinho. Dei-lhe o dinheiro e ele fez a gentileza de buscar cinco números – abandonei logo os grossos jornais com as notícias locais, e trouxe os cinco suplementos para os meus melhores amigos daqui, que se deliciaram com eles.
À noite, voei para Santa Cruz, onde passei dia e meio convivendo com as gentes bolivianas. Só na outra tarde viajei para o Brasil, no trem que tinha melhorado muito (leia-se: tinha sido privatizado), e que agora tinha água, eletricidade, banheiros, comida. Na primeira hora de viagem foi acontecer algo extremamente lamentável: um pequeno menino, de lá uns cinco anos, deixou cair a pesada janela de metal sobre sua tenra mãozinha, e ela foi dilacerada de uma forma quase que indescritível. Correu todo o mundo, todo o mundo queria fazer alguma coisa, parar aquele sangue, aliviar aquele pavor, consolar aquela mãe. Veio o chefe do trem, o coração tão magoado quanto o nosso, trazendo uma caixa de primeiros socorros, e havia um médico a bordo, e o médico foi peremptório: o menino teria que saltar na primeira cidade, teria que ter a mão costurada num hospital. A mãe estava em desespero: seu marido a esperava no fim da linha, e ela não teria dinheiro para comprar outra passagem de trem. Enquanto o médico fazia o que podia para enfaixar a mão do menino e acalmar mãe e filho, o chefe do trem passava mensagens de rádio, e disse que a própria caixa de aposentadoria dos ferroviários iria pagar as despesas de hospital. Uma ambulância já estava a caminho, e o trem parou na estação seguinte, que era quase que uma estação no meio do nada, e onde não havia nenhuma ambulância. De uma viagem por quatro países sobrara-me uma coleção de notas de vinte dólares – escorreguei uma para dentro do sutiã da mãe, disse-lhe quanto valia, que daria de sobra para ela alcançar o marido depois. Penso que outras pessoas deram outras coisas, pelo menos água e conforto deram, o ser humano é um ser solidário. E a mãe e o menino ficaram naquela estação perdida no meio do nada sem nenhuma ambulância visível ou audível. Havia angústia em todos os rostos, inclusive no do chefe do trem – mas que podia ele fazer se queria conservar o parco emprego que recebera do Capital?
Um velho sentara-se ao meu lado com a intenção de me paquerar. Dizia-se do Acre e contemporâneo da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, embora não devesse ter ainda nem 70 anos. Quando o trem retomou seu curso, ele respirou fundo:
- Ainda bem que não fui eu! – disse, aliviado, olhando para sua mãe calosa e dura, tão mais resistente do que a mão tenra do menino! Claro que não olhei mais para aquele poço de egoísmo pelo resto da viagem.
À noite, como de praxe, o trem parou num pequeno povoado que, tanto quanto me lembro, se chama Santo Antônio, para que todos pudessem saltar e comer as iguarias locais. Ah! Foi diferente de 13 anos antes, como foi! Comi os espetinhos e o os sucos de frutas espiando tudo, e as pessoas estavam magras, e as crianças eram macilentas, e os cachorros tinham as costelas à mostra e ficavam implorando um pedacinho do que a gente comesse. Agora todos queriam vender seus parcos produtos – a vida passava ali com o trem! E também um monstro chamado Neo-liberalismo passara por ali e devorara as gorduras das pessoas e dos cachorros.
Desde então, a Bolívia trocou mais três presidentes em uma semana – os descendentes daqueles 8.000.000 de Índios que morreram em Potosí são especialistas em dinamite!: o vice do Sanches de Lozada, o Presidente do Senado, o Presidente da Câmara – deixaram o que no Brasil a gente chamaria de Presidente do Supremo Tribunal Federal, para manter a legitimidade da ordem e chamar novas eleições. Também afilhado do grande Império do Capital, esse último foi empurrando a coisa com a barriga, tentando levar seu governo adiante sem que acontecesse o pior para seus patrões, mas chegou uma hora em que ele não conseguiu mais agüentar a vontade do povo, e no último dia 18.12.2005, o povo boliviano, pela primeira vez na sua História, elegeu um Índio verdadeiro para seu Presidente. Evo Morales é um índio Aimara que nunca estudou fora do seu país, que se formou no sindicalismo, no futebol e na música, e na luta do seu povo. Quando criança, passou fome, como tantas crianças que vi ano passado lá na pátria dele. Talvez, se um dia tivesse a mão estraçalhada dentro de um trem, fosse abandonado com sua mãe numa estação deserta, para que os outros não perdessem a hora.
Evo Morales, hoje, é o meu herói. Talvez seja levado a fazer coisas pelo grande Império do Capital, assim como Lula, ou Tabaré Vasquez, ou Kirchner – mas não é bem essa coisa de Socialismo que está incomodando muita gente no Hemisfério Norte (e também no Sul). O problema maior é que o cara é Índio! Será que o Ratzinger vai ter que emitir uma bula papal para esclarecer as coisas, dizer se Evo Morales tem alma ou não, como acontecia no passado? Como é que o mundo dito “civilizado” pode aceitar um Índio de verdade a governar um país com um subsolo cheinho de gás, como a Bolívia?
Ah! Bolívia do meu coração, eu estou contigo! Só tenho um jeito de te chamar: “Bolívia, meu amor!” Eu ainda volto lá, e um dia quero conhecer Evo Morales! Penso que a roda da fortuna começa a dar a primeira volta para nós, desta terra dita americana!
[1] Tiauanaco, a 70 km de La Paz. Segundo datações de 1997, Tiauanaco tem 12.000 anos, o que a torna mais antiga que qualquer cidade mesopotâmica ou egípcia. Penso que muitas décadas se passarão, porém, até que a “civilizada” Europa (que matou de fomes e maus tratos só 8.000.000 de índios nas minas de prata de Potosí) aceite tal verdade e permita que se mudem os livros de História.
[2] Pollo = galinha
Blumenau, 26de Dezembro de 2005.
Sobre o Autor
Urda Alice Klueger: Escritora catarinense de Blumenau, onde vive e trabalha. Publicou inúmeros livros, entre eles "Entre condores e lhamas" e "Crônicas de Natal"http://geocities.yahoo.com.br/prosapoesiaecia/urdaautores.htm
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