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Um Filme Estrangeiro De Que O Brasil Pode Se Orgulhar
por Chico Lopes
*
publicado em 05/11/2005.
Isso é raro de acontecer, e dá uma idéia do prestígio que o filme conquistou no exterior. Prestígio que, curiosamente, deve ficar restrito à crítica, porque não parece que a carreira de público do filme no Brasil possa ser das mais promissoras. A seriedade do filme desencoraja a massa freqüentadora de cinemas de hoje em dia - a dos adolescentes e a dos meros caçadores de entretenimento barato.
E, no entanto, eis a ironia: é um filme estrangeiro de que o Brasil pode se orgulhar. Nunca um diretor de cinema brasileiro, vivendo no exterior, fez um filme assim tão bom, capaz de atingir a crítica e o público. Hector Babenco, depois do sucesso de "Pixote" e "O beijo da mulher-aranha", foi viver na América e fez lá dois filmes, "Ironweed" e "Brincando nos campos do Senhor", mas não conseguiu cativar o público e a crítica se retraiu (Pauline Kael rejeitou "Ironweed" com violência). Walter Salles fez sucesso com "Diários de motocicleta", mas com um perfil definidamente latino-americano.
Só Fernando Meirelles, que já tinha estourado internacionalmente com "Cidade de Deus", conseguiu a proeza de fazer um filme que, sustentado na lógica do "mainstream" - porque, afinal, está bem dentro do gênero "thriller" -, atinge várias faixas do público mais inteligente. É um filme sério, que faz denúncias dolorosas sobre a indústria farmacêutica internacional na África, lembrando um pouco "O terceiro homem", de Carol Reed, mas é um filme em que a seriedade e o drama não significam chatice. Está pronto para ganhar de dois a três Oscares.
Ralph Fiennes, quem diria, ficou humano
Os méritos do filme de Meirelles, baseado em romance de John Le Carré, são muitos, a começar pela fotografia de César Charlone (também de "Cidade de Deus"), que nos mostra o Quênia (Nairobi, a capital, e a gigantesca favela de Kibera) como algo que explode em luz, calor, sensualidade, beleza e ritmos africanos. E em miséria.
Parece, de algum modo, que nós, espectadores, continuamos na atmosfera arrebatadora, se bem que violenta, de "Cidade de Deus". Um diretor que não fosse Meirelles, filmando a mesma história, não teria conseguido esse feito. Há ali, decididamente, o dedo brasileiro. O "thriller" ganha cores e intensidades emocionais muito próprias, ganha uma identidade: dá a impressão de que a história brota dali, visceralmente. Por contraste, os ingleses, o corpo diplomático em que a história se centraliza, parecem o que de fato são: os brancos colonizadores com sua feiúra, suas peles flácidas, sua arrogância viscosa e seu cinismo corrupto.
Mas, Meirelles estava correndo um sério risco, ao fazer esse filme: pegava o argumento de um escritor de best-sellers como Le Carré, de quem, confessou numa entrevista, nunca tinha lido livro algum. É certo que o que o atraiu no livro foi a possibilidade de filmar na África, abordando um tema que o interessava - o do uso de gente do Terceiro Mundo para experiências da indústria farmacêutica internacional, um negócio realmente macabro que é feito com africanos miseráveis porque, claro, eles não contam para o Primeiro Mundo, e, ao contrário, deve haver até o raciocínio de que podem morrer aos montes, fazendo benefício reducionista para as estatísticas demográficas - não são considerados seres humanos, em suma. Aliás, ser humano, no mundo atual, é cada vez mais uma categoria restrita a grupos de poder aquisitivo, raça e condições culturais bem definidas e excludentes. Nunca estivemos tão mal, em termos de humanismo, e toda a filantropia que virou endêmica nas mídias, nas mãos de astros e estrelas disto e daquilo, não passa de uma confissão de culpa que não exime ninguém da injustiça social que corrói o planeta inteiro.
Le Carré tem uma tradição de não dar muito certo na tela de cinema, exceto para um velho filme de Martin Ritt, "O espião que veio do frio", estrelado por Richard Burton. Foi um fiasco a adaptação que John Boorman fez para seu livro "O alfaiate do Panamá". Por isso, apaixonou-se pelo resultado que Meirelles conseguiu e já se viu, na televisão, os dois abraçados, indo a uma cerimônia de um festival inglês de prestígio, e o escritor dizendo que o Brasil tem que ter orgulho de Meirelles. Sem dúvida.
Pela primeira vez na vida, gostei de Ralph Fiennes no cinema. Bom ator, ele é em geral antipático e frio, e, marcado pelo papel do nazista que dispara tiros a esmo em judeus em "A lista de Schindler", estava ligeiramente mais humano em "O paciente inglês", mas não é uma figura agradável. Meirelles, no entanto, conseguiu torná-lo totalmente humano, simpático, e passamos a entender a sua passividade e a torcer para que ele adquira fibra, e por amor à sua mulher, que foi assassinada, seja bem sucedido em sua desesperada investigação do que há por trás do crime. A mulher, aliás, é Rachel Weisz, que até aqui, tinha feito filmes como "A múmia" e "Constantine", em que não se poderia adivinhar uma atriz de talento. Ela se parece com nossa Ana Paula Arósio, com a diferença de que sabe representar, e seu papel de Tessa o prova.
Quanto aos defeitos do filme, apontaria principalmente o de ter uma montagem meio a galope, que às vezes embaralha o entendimento do espectador. Por vezes, a fotografia de Charlone também dispara na frente da trama, em interesse, e o filme custa a voltar a se equilibrar entre o visual feérico e chamativo e o enredo. Esse é o estilo de Meirelles, sem dúvida um pouco exuberante demais, mas é, sem dúvida, o mesmo estilo que impede o filme de se tornar mais um thriller internacional sem maior interesse. Meirelles injeta vida, talento e novidade num gênero que tem uma tendência inapelável a se desgastar e ficar previsível de dar sono. Tem que se valer da correria - ou seja, trens em alta velocidade, perseguições de automóvel, súbitas emboscadas, tipos perigosos surgindo à distância, obrigando o herói a lançar olhares aprensivos para trás etc. Isso "empurra" a história, mas nem sempre é necessário. No entanto, o espectador não desgruda da cadeira, o que prova que o diretor fez as opções certas. O fato é que o espectador se interessa por um filme que, na verdade, é uma trágica história de amor envolvida com esse doloroso desprezo do Primeiro Mundo pela vida no Terceiro. Nada mal para uma época em que o cinema anda tão bobinho e vazio.
Há um reparo a fazer à presença de Rachel Weisz, não à atriz, que está bem no papel, mas a seu personagem, Tessa. Ela é um pouco a militante cri-cri, a ativista cheia de radicalismo e boas intenções que se perdem em ações confusas, de que a gente infelizmente conhece tantos exemplos. E, por vezes, no início, temos a tendência a achar Fiennes, ou melhor, seu personagem, Justin, um bobo, por não notar como ela pode ser chata. Mas, à medida que o filme avança, compreendemos que aqueles dois se amem - complementam-se, ele com sua mania tranqüila de cuidar de flores e se manter alheio ao mundo, ela com seu passionalismo mais que inflamado, que a faz se meter em assuntos de que uma pessoa mais sensata fugiria.
O filme parece condenar a sensatez como uma coisa inteira e visceralmente avessa ao heroísmo. O protótipo da sensatez cabe ao covarde personagem de Sandy (ótima interpretação de Danny Huston), que ama Tessa e se deixa chantagear por ela, que, determinada, se propõe a dormir com ele em troca de certa carta muito importante para a trama. Ele é um mau-caráter do tipo mais desprezível, pusilânime, casado com uma mulher que visivelmente o acha um fracasso. Outros coadjuvantes fazem do filme um desfile permanente de talento - Bill Nighby como Bernard, com sua máscara de múmia britânica perfeitamente traduzida numa composição irrepreensível, e Pete Postlewaite como o agente colonial torrado de sol e intempéries, metido com a sordidez da indústria farmacêutica, que Justin vai encontrar no Sudão, em meio às guerras contínuas que envolvem aquele lugar - uma pintura muito convincente do Inferno terrestre, com a fotografia sempre ativa e arrebatadora de Charlone.
O público mais refinado não deve perder esse filme. E é quase certo que vamos vê-lo na premiação do Oscar, que pode sim sair para Meirelles em 2006, e mais que merecidamente.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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