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Rachel Jardim e a herança dos mortos: um bordado a retomar
por Chico Lopes
*
publicado em 29/06/2005.
Nas conversas subseqüentes que tive com a escritora – pois ela me presenteou com sua amizade em telefonemas e cartas -, acabei sabendo que “O penhoar...” voltaria, numa quinta edição, pela José Olympio – Funalfa. Voltou. Foi relançado no dia 30 de maio deste ano em Juiz de Fora, na Biblioteca Municipal Murilo Mendes. O exemplar me foi enviado por Ernane Catroli, amigo de Rachel a quem, entre outras pessoas, ela dedica essa reedição. Pensei, então, que era a hora para uma releitura, esta sim cuidadosa. E a fiz.
Começo dizendo que essa quinta edição tem uma belíssima capa, pessoalmente escolhida por Rachel, em que um retrato das bordadeiras Irmãs Surerus, do acervo do Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, em preto-e-branco, é encimado por um diluído rosa onde se vê, em desenho, um galho de cerejeira. Entregando-se à leitura do romance, o leitor saberá o que aquelas irmãs concentradas no seu trabalho de mão e aquele galho de cerejeira significam.
Um pacto com o passado... ou com a Eternidade?
Não ofenderei Rachel se disser aqui que ela é uma escritora do passado, se nos ativermos ao sentido estrito com que se julga, hoje em dia, superficialmente, as estéticas que não compactuam com a “transgressão” e outras bobagens frívolas, passageiras, que a mídia incensa cegamente. O refinamento que Rachel cultua – grande leitora de Proust que é – pertence a uma categoria que, decididamente, anda em baixa. Mesmo as pessoas tidas por refinadas, hoje em dia, não passam das leituras de colunas sociais e, quando muito, de algum livro da moda ou nem deste, mas de suas orelhas, e Rachel sabe disso. Fala-se de um escritor ou outro por ouvir dizer ou por razões extraliterárias. Disse a ela várias vezes – e nem precisava dizê-lo, pois ela sempre acreditou nisso, e seus personagens o dizem – que entre vida literária e literatura vai um abismo, que a primeira até mesmo impede, com seus mundanismos, que a segunda se manifeste com inteireza. Rachel, que escolheu a solidão, como tema literário e como vida, é a melhor prova disso.
“Cada vez mais é ao passado que presto contas e só através dele tenho a visão unívoca de minha vida. Penso, às vezes, que não é para frente que caminhamos. É para trás que prosseguimos, carregando as imagens do presente, o futuro um acréscimo que se esgota na órbita do dia”. Perfeito. Como eu gostaria de poder ter escrito isso! Está lá, na página 170, de “O penhoar chinês”.
O leitor encontrará, nessas 268 páginas, uma história que parece ter a simplicidade de um folhetim (a uma certa altura, inclusive, tudo dependerá da revelação escondida por uma carta) – a história de uma família e de uma casa, em aparência. Ora, um superficial qualquer pode julgar também, pela orelhada, que “Em busca do tempo perdido” é só a história de um narrador asmático, apaixonado edipianamente pela mãe, que recorda seu passado, seus amores, seus amigos, sua escalada social, sua decadência, e, finalmente, sua reclusão para escrever um romance monumental. Proust também é folhetinesco, sem problema algum. Rachel nos conta, na verdade, outras coisas, mas aí, caberá ao refinamento dos leitores entender onde, em essência, se encontram um bordado com a paisagem chinesa imaginária de um pavão e cerejeiras, um irmão de sangue que aparecerá como um xipófago que permanecera oculto, uma mãe separada de um pai por barreiras muito sutis dentro de uma casa construída por este. São formas com as quais Rachel bordará. O começo terá contraponto exato e lógico no fim. Tal como em “A busca...”, é preciso ir até ao extremo extenuado da vida para encontrar o recomeço.
É de Arte superior que esse livro trata. De uma mãe que faz seu bordado e lê o “Doutor Faustus”, de Mann, e ouve Mozart e Purcell, de uma filha que se faz escritora (sem saber que a mãe também o era, de certo modo, e refinadíssima), de um pai arquiteto que ergueu uma diáfana e excêntrica mansão para a mulher oficial e outra casa para uma ilegítima, dividindo-se, perdendo-se. Arquitetura, urbanismo, bordado, música, literatura, “O penhoar chinês” toca em tudo que é preciso, o que se trama e o que precisará, sutilmente, ser destramado para que a essência do ato criativo se desvende. Não que aí o Mistério se esgote. Muito ao contrário: é aí que explode em epifania.
Rachel é uma festa para o leitor sensível. Uma festa refinada, naturalmente, e como os banquetes literários de hoje em dia têm como cardápio só caldos ralos, está fora de moda. Mas, ela tem leitores fiéis. As duas mulheres, Lélia Almeida e Rosalina de Vincenzi, que assinam o prefácio e o posfácio respectivamente, estão entre eles. Mas há outros, há mais, há os anônimos, há os outros escritores que aprenderam suas lições, de algum modo, e fazem obras de costas para a circunstância, procurando, acima de tudo, a fidelidade a si mesmos, com reverência e amor doido ao passado, buscando ser fiéis a si mesmos numa jornada delirante que, a uma certa altura, poderá dar na fidelidade à alma de todo mundo, nessa universalidade a que a grande literatura sempre aspira.
O certo é que é preciso reler Rachel. E a José Olympio/Funalfa está de parabéns pelo livro que, mesmo tendo lá seus errinhos de revisão, é uma bela edição.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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