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O caixote
por Airo Zamoner
*
publicado em 02/05/2005.
Certa vez, ouviu numa roda de amigos que para ser bem sucedido na vida, jamais deveria olhar os outros de baixo para cima. Ficou impressionado com aquilo. Excluindo as crianças, contudo, não encontrava ninguém mais baixo que ele. Na verdade, sentia-se muito mais baixo do que realmente era. Para não erguer a cabeça quando falava com alguém, erguia apenas os olhos, num esforço cômico. Virou um vício. Sempre forçava o queixo contra o minúsculo pescoço. Isto resultava numa postura muito peculiar, numa forma de falar muito engraçada. Era divertido ouvi-lo e esta era sua única virtude aparente até então.
Mas, Lunácio tinha outro problema. Ao freqüentar a escola, sentia uma preguiça danada de ouvir a professora. Muito mais ainda, de fazer qualquer tarefa ou leitura. Quando era chamado para ler alguma coisa, soletrava, soletrava, depois jogava o caderno ou o livro longe e dizia que não ia mais fazer aquilo. Enterrava a cabeça nos braços, abaixando-a sobre a carteira. Ninguém conseguia tirá-lo dali até o final da aula.
Gostava mesmo era do recreio. Ali, era um rei, já que sempre ficava no centro das rodinhas. Como gostava muito de falar, falava pelos cotovelos. Um colega mais brincalhão, arranjou certa vez um caixote e mandou Lunácio subir nele sempre que quisesse falar. Ele adorou o caixote. Jamais o esqueceu. Assim, aos poucos ele foi perdendo o vício de enfiar o queixo no peito e ficar tão feio.
Falar o tempo todo era sua maior diversão. Claro que não dizia nada, mas a rodinha se mantinha ali, rindo à beça, porque o jeito dele falar era realmente muito divertido. Conseguiu, a duras penas, ser alfabetizado. Como detestava ler, deixou para trás qualquer a aquisição de conhecimentos. Estudar para ele era uma tortura e sem estudo, não conseguia avaliar a dimensão que isto teria em sua vida.
Um dia, finalmente livrou-se das abomináveis obrigações escolares. Cresceu, virou homem. Ninguém mais poderia obrigá-lo a nada. Esta foi uma de suas maiores alegrias.
Foi trabalhar naquilo que não exigia esforço advindo de leitura. A prática era o que interessava. A prática era o único veículo que admitia usar para adquirir conhecimento. Bastava olhar como um outro fazia, para repetir igualzinho. Nada de livros chatos, leituras maçantes, soletradas. Deu certo por muito tempo, apesar de ter sofrido alguns percalços...
Lunácio descobriu que o caixote poderia ainda ser muito útil, depois dos torturantes anos de escola. E como acontecia nos recreios daqueles duros tempos, passou a acontecer também entre seus colegas de trabalho. Muito observador, começou a falar o que todos queriam ouvir. Subia no caixote e a turma já se aglomerava em volta. Criou fama, o Lunácio. Uma fama tão grande que entregaram a ele muita liderança e responsabilidades. Sem perceber, acabou com o traseiro pregado numa cadeira atrás de uma escrivaninha cheia de papéis, relatórios, livros e quetais. Despreparado que estava, ficou furioso. Espalhou tudo pelo chão. Gritou que não admitiria aquilo. Jamais quis estudar e não era agora que se renderia a esta abominável tarefa. O que ele queria mesmo, era recreio e o caixote lá fora. E conseguiu! Teve seu recreio, mas um recreio mais sofisticado, adaptado ao gostinho por um chope gelado, um futebol, um bar, os companheiros e a descoberta maravilhosa das viagens onde muitos caixotes o esperavam. E então ele falava e falava e falava.
Não sabia se expressar muito bem. Errava muito. Agredia todas as regras gramaticais, mas falava sem parar. Por não ter conteúdo consistente, errava também nas idéias. Não lia nada, não estudava nada, mal e mal ouvia os outros. Só admitia a prática e a imitação, que tão certo haviam dado no passado. Muitas vezes, pessoas e grupos se consideravam agredidos e ofendidos por expressões brutas que ele usava. Assustava-se e não entendia a razão. Não desenvolveu nenhuma capacidade analítica, nenhum espírito crítico, nenhuma competência real. Virou um eco. Mas um eco prejudicado pela absoluta falta de entendimento de qualquer coisa mais complexa que “dois mais dois”. Em seu meio, porém, todos eram muito parecidos e por isto não importava muito. As pessoas mais preparadas fingiam e aplaudiam, mas por razões que ele jamais conseguiria imaginar. Acreditava piamente que era muito sabido porque até as pessoas estudadas o endeusavam. Depois que se recolhia, à noite, adorava se refestelar no sucesso imaginariamente merecido.
Sua fala constante e vazia tinha cativado muitas pessoas. Por observação e ouvindo assessores, aprendeu muitos truques retóricos, embora nem mesmo a essência destes truques era capaz de compreender. Transformado numa das mais importantes lideranças de seu povo, acabou por desnudar-se por inteiro, muito embora isto tenha demorado um bom tempo, a um custo lastimável.
Hoje, Lunácio retornou a suas origens. Voltou correndo, escondido. Fugiu às pressas, o Lunácio, ameaçado que foi pela fúria que se avizinhava. Tempo difícil para sua cabeça tumultuada. Mas aos poucos foi se readaptando e voltou a enfiar o queixo no peito...
Embrenhou-se pelas profundezas de paragens onde a ignorância ainda grassa. Voltou a subir no caixote e deixa extasiados os pobres diabos que se aglomeram a sua volta...
Sobre o Autor
Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
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