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BIOLOGIA
por Pablo Morenno
*
publicado em 24/03/2005.
Um ninho de coelho com ovos nunca foi absurdo para mim. A explicação não veio da biologia- ciência, veio da observância da vida. Qualquer menino do interior, como eu, punha numa poesia a aliteração ovos-aves. Claro, às vezes, me confundia na hora das rezas, mas nunca perguntei prá ninguém se a ave-maria era ovípara, nem tive dúvidas quanto o homem de gema que era Jesus. Crianças sabem bem conviver com perguntas. No chocar da vida, as respostas vão aparecendo naturalmente, bicam a casca do embrulho e eclodem entendimentos.
Os ovos lá de casa eram de galinha, de pata ou de pássaro. Sempre soube, coelhos são - cujo termo exato aprendi na escola - vivíparos. Eu os criava desde os cinco anos, ganhei um casal em meu aniversário. Coelhos nascem da barriga de sua mamãe, peladinhos e cegos. Mamãe-coelha esconde os filhotes no ninho, uma cama de pêlos do próprio corpo. Se acesso têm, as coelhas preferem ninho na terra às caixas de madeira. Seu instinto de proteção avisa: no ventre do chão é mais fácil preservar os filhos. Fazem uma toca, dão à luz lá no fundo e tapam a porta com terra bem socada. É difícil, para quem não tem experiência, perceber a entrada do ninho. Os filhotes estão seguros, só saem ao sol em condições de sobreviver por conta própria.
Estávamos próximos da Páscoa de meus sete anos. Talvez, Semana Santa. Uns parentes nos visitavam. Chegaram com seus melhores amigos, três ou quatro cachorros caçadores de lebres. Cachorro, como se sabe, também não põem ovos, similares a coelhos neste particular, mas, ao contrário deles, carnívoros. Na varanda pais e tios tomavam mate, no potreiro brincávamos as crianças, no pátio os cachorros soltos faziam festa.
Depois da partida dos parentes e seus cães, fui à horta colher verduras. Coelhos, como se sabe, são vegetarianos. Ao chegar ao cercado, de longe, já vi pêlos brancos e manchas vermelhas na madeira. Mais perto, tive dor de facas afiadas: terra e sangue, meus coelhos mortos. Terrível paisagem. Lembrei-me então dos filhotes na toca. Cavei. De olhos semi-abertos, como se previssem o desastre, aqueles filhotes foram salvos. Recomecei minha criação.
Na Sexta-Feira Santa, a paixão e morte de Jesus recordava meus coelhos mortos. Depois, a Páscoa vestiu-se de um novo sentido. São eles que andam por aí, ressuscitados, renascendo mais fortes que os dentes dos cães. Ei-los alvos nas manhãs pascais, cheios de imortal luminosidade. Ao imaginar a pedra tirada da boca do túmulo, relembro a ninhada salva, os olhinhos abismados com a luz, o renascimento do mundo dos coelhos.
Acredito ter explicado o porquê de ser natural coelhos com ovos de Páscoa. O mundo está cheio de cães, isto é mais grave. Para mim, esta festa é grito de vitória dos indefesos contra a voracidade dos cães. Neste iluminado Domingo, meus coelhos mortos ressuscitam, juntam-se aos saídos da terra e, no interior e nas cidades, ladrilham os caminhos de ovos intumescidos de vida.
Ao menos um dia por ano, a vida dos fracos supera a violência dos fortes. As “aves-marias”, quiçá, tenham a ver com este ovo de esperança posto. Em tempo de Páscoa, as lições de biologia deixam a lógica da ciência para abraçarem metáforas. Bio – logia, como dizia a professora, é estudar a vida.
Sobre o Autor
Pablo Morenno: Pablo Morenno nasceu em 21.05.1969, em Belmonte, SC, e mora em Passo Fundo, RS. É licenciado em Filosofia e bacharel em Direito. Também é professor de Espanhol em cursinhos pré-vestibular, músico e servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região, e pinta nas horas vagas. Escreve uma coluna semanal de crônicas no jornal O Nacional, de Passo Fundo RS, e Nossa Cidade de Marau-RS. Colabora com os jornais Zero Hora, Direito e Avesso, e com sites de leitura e literatura. É Membro da Academia Passofundense de Letras, ocupando a cadeira cujo patrono é Érico Veríssimo. Como animador cultural e escritor, participa de projetos de leitura do IEL- Instituto Estadual do Livro do RS e de eventos literários no Rio grande do Sul e Santa Catarina. Com suas palestras interdisciplinares e descontraídas, utilizando-se de histórias e da música, conversa com crianças, jovens, pais, professores e idosos sobre a importância da leitura e da arte na vida.Livros publicados: POR QUE OS HOMENS NÃO VOAM? Crônicas, WS Editor e MENINO ESQUISITO, Poesia Infantil, WS Editor. Contato com o Autor: Pablo Morenno
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