Crônicas,contos e outros textos
PÁGINA PRINCIPAL → LISTA DE TEXTOS → Lucilene Machado →
Verdes Trigos em São Miguel das Missões/RS - Uma viagem cultural
VerdesTrigos está hospedado no Rede2
Leia mais
-
NOSSOS AUTORES:
- Henrique Chagas
- Ronaldo Cagiano
- Miguel Sanches Neto
- Airo Zamoner
- Gabriel Perissé
- Carol Westphalen
- Chico Lopes
- Leopoldo Viana
- mais >>>>
Link para VerdesTrigos
Se acha este sítio útil, linka-o no seu blog ou site.
Anuncie no VerdesTrigos
Anuncie seu livro, sua editora, sua arte ou seu blog no VerdesTrigos. Saiba como aqui
AS HORAS
por Lucilene Machado
*
publicado em 12/01/2005.
Rimos pela rua afora como dois cães viralatas que se contentam com qualquer sobra de festa. Depois me diz que logo a vida dará uma guinada, que vai gravar um CD, que tem amigos influentes e etc. Eu arqueio as sobrancelhas e movimento as pupilas com o espanto de uma primeira vez, sempre fingindo, porque conheço esse seu pesadelo obsessivo de se tornar celebridade e não quero imputar-lhe uma dor capaz de despertá-lo do sonho. Continuamos o percurso com nossos passos calculados, criando pretextos exatos para que às onze em ponto, ele comece o show.
Ele sabe, ainda que negue, que seu destino será tocar em bares em meio à fumaça dos cigarros e à esperança tosca que lhe oprime a garganta num nó de amargura. Às vezes, disfarçando a insegurança, pergunta-me se acredito em seu talento, sabendo que haverei sempre de gritar pelos quatro cantos da alma que sim, que sim, que sim. Diz também que a vida vale pelo fato de eu existir e promete não me esquecer no dia em que o mundo reconhecer sua arte. Indiferente, o aplaudo e faço minha reverência.
A rua é o nosso palco. Ele sobe na pilastra de um terreno e ensaia um grito de vitória. Eu rebato, da platéia imaginada, com "viva!" e "magnífico!", forjando em mim o que pode ser melhor em termos de pieguice. Depois ele cruza minha mão com a dele, leva-a até ao peito e enverga-se para beijá-la com ternura. Às dez e cinqüenta, diz se quero beijá-lo para aproveitar o momento, antes que lhe chegue a fama. E eu o beijo com loucura, passeando minhas mãos clandestinamente por baixo de sua camisa, vasculhando seus pêlos e sentindo seu cheiro de grama molhada. A língua ocupada em medir nossa distância é a mesma que tenta desenrolar a frase: "é esse peão que eu amo, que eu amo, que eu amo". Às onze, volto para casa ouvindo os primeiros sons de sua voz a me despertar desejos insólitos.
Ilustração: Salvador Dalí. The Persistence of Memory. 1931. Oil on canvas, 9 1/2 x 13" (24.1 x 33 cm). Given anonymously. © 2002 Salvador Dalí, Gala-Salvador Dalí Foundation/Artists Rights Society (ARS), New York
Sobre o Autor
Lucilene Machado: Lucilene Machado é professora, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da UBE-MS. Tem três livros publicados, sendo poesia, literatura infantil e contos. Possui artigos publicados na Itália, Espanha e Venezuela. Atualmente é mestranda em Estudos Literários com ênfase na obra de Clarice Lispector.< ÚLTIMA PUBLICAÇÃO | TODAS | PRÓXIMA>
LEIA MAIS
SEJAM MÃES, por Pablo Morenno.
ANNELORE E GERTRUDES, por Viegas Fernandes da Costa.