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As Três Fases/Faces de Bosch
por José Aloise Bahia
*
publicado em 30/10/2004.

Muitos estudiosos das artes plásticas dividem a obra de Bosch em três fases. Um primeiro período (a primeira fase/face) é marcadamente influenciado pelas iluminuras (pinturas e ilustrações feitas por meio de cores vivas, em ouro e prata, onde se combinam letras, cenas, flores, folhagens e a figuração) tão comum na Holanda naquele tempo. Neste período (de 1470 até +-1480) as composições são relativamente simples, com pouco uso da perspectiva e sempre pautadas pelas invocações bíblicas, como a Adoração dos Magos, Cruz às Costas, o tríptico (conjunto de três painéis) Altar de Santa Juliana, mais conhecido como a Crucificação de Santa Juliana e as Bodas de Canaã, todos óleos sobre madeira. Neste último quadro, segundo pesquisadores, já se começa a perceber os delírios profanos de Bosch, para uma interpretação nova e original das passagens bíblicas: uma complexa alegoria da moral humana, onde os extremos, o real e o ideal convivem numa satisfação carnal e mundana dos prazeres (o pecado) em contraponto ao sacrifício imposto pela vida espiritual e monástica, o retiro, o silêncio e a oração, símbolos da salvação (a virtude). Eis os temas que traspassam um tipo de crise, beirando o absurdo e aprofundam a busca de uma heterotopia (ligar coisas impossíveis), os quais confirmam a indecisão universal e criativa em Bosch: o homem é um ser em crise.
Mesmo contemporâneo do Renascimento Clássico, no final da Idade Média e início da Idade Moderna, de forma independente e solitária, Bosch antecipa e profetiza um tipo de maneirismo no bom sentido do termo (momento de transição, momento de crise) que irá aflorar bem longe, e contagiará os expressionistas e surrealistas. O seu senso de humor e ironia traduz de maneira eloqüente a passagem e a transição dos séculos 15 e 16. Bosch, com certeza, foi uma testemunha ocular da História.
Quando a fase (face) barroca míngua para entrar em cena o Renascimento Clássico, Bosch em seu ímpeto criativo para descrever o real em cores e figuras entrelaçadas, lança mão de outros recursos, não se atendo somente a razão. Ele mescla o visceral mundo dos desejos humanos reprimidos, delírios e cantos profanos (carmina burana) com a moral católica, num local onde Deus jamais poderia imaginar: o universo dos sonhos. Parecendo antecipar o inconsciente freudiano e as metamorfoses kafkianas, numa linguagem própria e original, estampadas em telas, onde convivem bichos, corpos nus, luxúria, demônios, bacanais, detalhes do cotidiano, medos e desejos latentes dos camponeses e religiosos. A moral cristã batendo de cara com o mais doce dos pecados: as delícias do mundo.
Na segunda fase (face), considerada por historiadores como intermediária (+-1480/90), o espelho do homem é retratado de uma maneira onde santos e seres comuns e vulneráveis convivem lado a lado. Como no quadro As tentações de Santo Antão.
O olhar medieval e impiedoso de Deus já não caminha só. Vastos sentidos, visões e a mão de Bosch pintam os Sete Pecados Mortais e os Quatros Novíssimos do Homem. Em tom de sátira, Bosch engloba os sete pecados capitais, bem como dotam-nos com personagens exemplares para falar e ironizar a nobreza, a igreja e a ingenuidade humana. Na Nave dos Loucos, freiras e camponeses convivem de uma maneira atroz e a espera de castigos impostos aos pecadores. De maneira especial as freiras, figuras angulares e soberbamente acostumadas aos típicos vícios dos conventos: a luxúria e a gula.
O pecado e a tolice permeiam toda a obra de Bosch. A ilustração está no quadro O Juízo Final. O temor e o sofrimento presentes no inferno e purgatório inflamam o óleo com cores fortes e telúricas; em oposição, na parte superior do tríptico, na meia-lua, anjos com seus clarins, em tons aneblinados no céu, formam um ápice da redenção, salvação e encontro com o Criador.
O triunfo do pecado e o pessimismo em relação à existência humana aparecem de forma magistral em dois trípticos na sua última fase (face). No painel central do Carro de Feno, observa-se o encontro de um papa e um imperador, a plebe e o clero em torno de um estranho carro, lutando entre si para ver quem toma posse deste feno salvador e transgressor; ao mesmo tempo símbolo e signo místico, no mesmo tom cinza da nuvem ao alto, onde aparece Cristo de braços abertos. Nunca o pecado e a avidez foram descritos de uma maneira tão impiedosa.
Por último, o seu painel mais conhecido: O Jardim das Delícias Terrenas, também conhecido como Paraíso Terreno. Aqui a luxúria, a perversão, o amor secreto, o fruto proibido, a nudez e o pansexualismo estampados em imagens e iconografias diversas, brilham em contornos estranhos, entre fontes, casas, edifícios de ouro e prata, e demonstram a vivacidade colorida que é a Fonte da Juventude. O que Bosch, no fundo da sua moralidade cristã, nos mostra é um falso paraíso, cuja beleza é passageira e conduz os homens à ruína e condenação. O homem em completo estado de êxtase, fugindo e abandonando o verdadeiro paraíso por causa do falso paraíso. O pecado mortal.
Tanto o Carro de Feno quanto O Jardim das Delícias representam a humanidade nas garras dos seus eternos inimigos: o mundo, a carne e o demônio. O homem submetido às tentações profundas e torturado pela imaginação diabólica de Bosch. A representação do inferno tentador e sugestivo, lembrando a todos o destino cruel que aguarda os que sucumbem ao mal.
O estilo de Bosch é único na Historia das Artes. Suas faces, alegorias ou provérbios sobre o destino dos seres humanos confirmam o grande mar de dúvidas, delitos e crises da contemporaneidade, os quais somos sempre submetidos, num tempo catastrófico e efêmero, povoado de sonhos e alucinações advindas do inconsciente, temores e violências do cotidiano. O mundo boschiano, que desconhece a razão, ou a conhece de uma outra maneira e numa outra dimensão, é tão impiedoso e tentador que o real e o desejo se transmutam numa diabólica surrealidade.
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