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A transcendência através do clichê

por Chico Lopes *
publicado em 09/09/2004.

O beijo da Mulher-Aranha é um filme estranho. Embora em conjunto possa ser considerado bom, até memorável – tanto que seu particular encanto me fez vê-lo duas, três vezes – tendo a ficar um pouco incomodado com sua cara-de-lugar-nenhum: um diretor argentino naturalizado brasileiro, dois atores principais norte-americanos, uma trama que tem o dedo decididamente portenho de Manuel Puig filmada em locações em São Paulo, que passa a ser tida como uma capital qualquer da América do Sul, e tudo falado em Inglês. É duro engolir Luis Alberto Molina e Valentim Arregui como tipos possíveis no contexto brasileiro; o primeiro é um homossexual preso por corrupção de menores, o que parece mais difícil de acontecer no Brasil, e o segundo um típico esquerdão “cucaracha” barbudo que dispara clichês de guerrilheiro guevarista com um ar de plena convicção (a coisa só fica aceitável porque Raul Julia é bom ator e o contraponto oferecido por William Hurt acaba sendo irônico). Arregui é raso e, por isso, nos parece mais crível. Molina é um caso de vocação para o amor-sublime-e-sacrificado numa mulher – o que seria compreensível se mulher fosse. Estamos diante de um produto transnacional híbrido, de um artefato cuidadosamente sem pátria visando o mercado norte-americano, e, a partir dele, o mundial.. É menos um filme sobre um dado país, uma dada época, que uma celebração e uma crítica irônica aos prazeres do escapismo cinematográfico, destinada a universalizar.

Com cuidados que normalmente não se vê em produções brasileiras comuns, o filme tem, na abertura, o encantamento da Valsa da mulher-aranha, composta por John Neschling, e vai nos levando, com doçura e melancolia, para uma cela e para um devaneio de Molina. Curiosamente, é sempre melhor enquanto a realidade da cadeia não começa a entrar na narrativa e enquanto não se “areja”, ou seja – Molina sai pelo presídio, lembra da mãe, de andanças pela cidade etc. O filme é todo feito por e para William Hurt, que compreensivelmente ganhou o Oscar de melhor ator de sua vida por ele. Estar com ele, com seus devaneios, suas brincadeiras, sua doçura, sua dignidade, é tudo o que o espectador quer. As outras interpretações oscilam entre o profissional e o duvidoso. Mas, como a história exige uma tipificação por vezes bem caricata e “over”, tudo se desenrola muito bem. Desse ponto de vista, Sônia Braga é muito melhor como a afetada “chanteuse” de cabaré-parisiense-freqüentado-por-nazistas que como a namorada naturalista-bicho-grilo de Arregui.

Puig criou esse homossexual – que certamente carregava muito de si mesmo – com perícia. Lá está o gosto da bicha por divas de cinema e por filmes nas quais se projeta na heroína, vivendo um melodrama suntuoso, masoquista e cheio de deleites “camp” em que sua afetividade deslocada encontra compensações e seu desejo de luxo e beleza pode andar de mãos dadas com ideais de abnegação, sacrifício e outros disparates típicos de dramalhão que vão de Sara Montiel a Lana Turner.

Ele é um estereótipo – ns parede da cela, tem retratos de estrelas de cinema e da mãe. Transforma seu cubículo de preso numa espécie de espaço privilegiado onde pode manipular sua maquilagem, improvisar turbantes e dormir como numa “alcova de princesa”. A miséria e a solidão da cela não travam a sua fantasia; ele tem ali o seu camarim, o seu palco, o seu campo de decolagem para a transcendência dos melodramas baratos que vai narrar, para entreter seu companheiro de desgraça. Que, embora embalado pelo encantamento básico do ouvinte de histórias – e ainda mais um ouvinte a quem não resta mais nada - resistirá sempre às suas fantasias, espantado com a sua alienação política. Tenta sacudi-lo para a evidência de que primeiro filme que narra é mera propaganda nazista. Não importa. Para Molina, a política e o anti-semitismo são apenas panos de fundo, o que importa é a história de amor entre a “chanteuse” que tem amigos – seus futuros assassinos – na Resistência, e o comandante alemão ocupacionista que lhe mostra os benefícios de um regime bem-intencionado e mal-compreendido.

No livro de Puig, muitos eram os filmes narrados. Babenco ficou com este e, quando à historinha da Mulher-Aranha, é apenas um pequeno episódio que terá função simbólica e peso narrativo acessório. Nela, há um náufrago numa ilha deserta, por quem a Mulher-Aranha, belíssima, mas presa numa teia, se apaixonará. O náufrago é Valentim e a Mulher é outra vez Sênia Braga, revezando-se nos três papéis femininos de importância do filme, recurso inteligente de Babenco, que assim a torna sempre, na verdade, a mesma mulher, espécie de encarnação e travesti espiritual de Molina.

A trama absurda do melodrama “nazi” terá ecos na vida real do narrador e de seu ouvinte. Molina fará um jogo perigoso com os diretores do presídio, prometendo a estes arrancar revelações de Arregui acerca da localização de seu “aparelho” e dos nomes de seus companheiros de guerrilha. Com isso, trará para a cela boa comida e cigarros e prosseguirá enredando o esquerdista em suas narrativas fantasiosas de sedução. O outro começa a percebê-lo bom sujeito, apesar da desmunhecação que lhe parece indigna de macho, naturalmente, e a ser complacente com suas fantasias. Molina comove, porque tenta pôr na vida real a nobreza, o romantismo, a poesia e o senso de sacrifício que só encontra nos seus filmes favoritos. E mostra a ternura, a solicitude, a disponibilidade, a veneração de uma mulher sonhadora, demasiadamente sonhadora, pateticamente deslocada num corpo de homem. Ele encarna um ideal de passividade, a patética aspiração do invertido a ser amado por um galã viril – a vida inteira procurou um “homem de verdade”. Mas, é bem lúcido para deduzir: “Um homem de verdade só pode amar mulheres de verdade.” São tão grandes a solicitude e o anseio de veneração que ele limpa as fezes de seu companheiro envenenado pela comida do presídio e obviamente gosta quando este o trata com rispidez, já que não é assim que um “homem de verdade” deve ser? Aí está a “moça direita” se deixando arrebatar pelo “príncipe” imperativo e durão.

Não se pode fazer um só reparo a essa composição de Puig-Hurt. Há aí uma mistura curiosa de sentimentalismo absurdo e nobreza de caráter. Sem essa “feminilidade”, ele não faria pelo companheiro de cela tudo que faz, e ainda que haja em sua dedicação aquele cálculo óbvio de quem espera uma recompensa sexual-romântica, não há impureza – o que há é uma concepção tortuosa, mesmo cômica, do amor.

E há uma noite de amor entre eles, apenas sugerida por Valentim – naturalmente, o ativo, a quem cabe o papel menos desonroso, pois é o “homem” – que apaga a vela e se ajeita no escuro. É quando Molina conseguiu um indulto e poderá deixar a cadeia para ver a mãe, a quem causou muitos desgostos (a atriz brasileira Miriam Pires, muda, mas uma bela imagem). A despedida dos dois prisioneiros é marcada por uma chantagem: Molina pede um beijo a Valentim e este cede, depois de estabelecer que ele deverá dar um telefonema a seus companheiros de guerrilha (é uma concessão de macho-solidário-aos-companheiros, mas parece a Molina algo extasiante) e sussurra o número a seus ouvidos.

A despeito de seu credo visceralmente apolítico – para ele, o Melodrama se situa acima da História, os sentimentos é que são tudo – eis Molina fazendo um jogo em que serve simultaneamente à esquerda e à direita, aos guerrilheiros e aos repressores: os diretores do presídio sabem que ele vai arrancando concessões especiais – comida, cigarros etc – para o outro prisioneiro, por quem está apaixonado, e “dão corda para que se enforque”, ou seja, dão-lhe o indulto para que os conduza ao “aparelho” dos companheiros de Arregui, que é o que ele fará, unicamente por amor.

A causa de Molina é pequena, individual, “alienada”, mas ele tomba como mártir e anjo no final do filme – perseguido pelos repressores, os guerrilheiros, com medo de que ele seja apanhado e confesse, atiram nele de um carro mais distante. É impossível saber qual lado é mais duro, afinal de contas, porque os dois são pródigos nessa lógica infeliz da luta armada contra a ditadura que faz assassinos na facção do Bem e na do Mal, intercambiáveis. Molina parece um pobre bobo inocente, mas morre com uma tal dignidade que acabamos por ver nele uma grandeza inegável.

O filme se eleva muito, nesses momentos. E tem outra elevação quando vemos o fim que é dado a Arregui: torturado, espancado, moído na cela, e tratado a morfina por um médico do presídio, ele morre dentro de um sonho, em que a namorada, Marta, lhe aparece, e, ao som do bolero da Mulher-Aranha, o leva para um êxtase que já sabemos ser o do fim de sua vida.

Uma amiga, na época, deixando-se encantar muito pelo filme, me disse que Marta aí seria o espírito de Molina indo ao encontro do seu amado. Faz sentido. E faz piorar muito o sentimentalismo excessivo que poderia ter feito o filme desabar, não houvesse nisso tudo uma propensão deslavada à paródia – dificilmente, pode-se ver o amor exaltado e deslocado de Molina como mais que uma sátira aos exageros de certo tipo de cinema. Mas ele comove porque leva às últimas conseqüências coisas que um homossexual experiente e cínico teria posto à parte, com um risinho, há muito tempo, em sua vida.

Mas a mão de Babenco toca, querendo ou não, em muitos pontos certos: o amor de Molina o leva a ser essa mistura de paródia e santidade, e, de algum modo, as idealizações da esquerda na luta armada nos aparecem assim também, como lugares-comuns cheios de tolice idealizante que só ficam sérias porque, afinal, podem levar muita gente à morte – Valentim também é uma paródia.

O Amor – e o Mercado – acima de tudo

No melodrama, o amor é tudo e a sua ausência é a única tragédia existencial digna de relevo. Portanto, o filme, apesar de sua metalinguagem e sua auto-consciência, tão up to date, está filiado a essa estética e a nenhuma outra mais. O pano de fundo da repressão argentina-brasileira é apenas esquemático, vago e difuso, quase que só um pretexto para a história de amor entre bicha e guerrilheiro. É correto: Dr. Jivago, de David Lean, traz uma série de distorções da revolução leninista, segundo alguns críticos, mas quem vai ver o filme para ver isso? Que pouco isso importa comparado à suprema dor de Iuri perdendo Lara! Na lógica do gênero, a realidade importa pouco, pois aparece apenas como um bloco hostil à realização do desejo individual romântico. Pouco importa se se está lutando contra este ou aquele governo, este ou aquele regime, ou de que lado se encontre o herói, visto que ele estará sempre submetido a uma ordem de outra espécie – a amorosa, considerada como essencial, condenada a faltar, todos os acasos cruéis da vida só fazendo com que a idéia de felicidade, calcada no êxtase do encontro entre duas almas, se esfacele.

A trilha sonora de John Neschling acentua o encanto melancólico e elegíaco do filme. Sublinha muito bem esse caso-de-amor-que-não-dá-certo. Posto na categoria de prioridade, de nexo determinante, o amor impossível faz do filme alguma coisa de Douglas Sirk que pudesse, ajustada a uma nova época, tocar em assuntos proibidos nos tempos de Sirk. Um pouco de política, um pouco de realismo cru, a “exótica” América Latina dos guerrilheiros e das ditaduras, a ternura heróica de um homossexual que pode se provar um “ser humano nobre”, na tradição dos filmes humanistas destinados ao Oscar. O Oscar conferido a William Hurt, aliás, descontado o fato de que o ator é realmente muito talentoso, prova o gosto da Academia norte-americana por produções sentimentais nas quais realidades mais duras são obliteradas em favor de uma visão humanitária que privilegia as atitudes do indivíduo heróico contra o Sistema opressivo. E, embora acabe amargamente, O beijo da Mulher-Aranha é uma homenagem ao cinema como arte de puro escapismo e espaço soberano do desejo. Seu meta-cinema é suntuoso e auto-indulgente. Babenco pensou o filme em termos de mercado ianque, pois deu aos norte-americanos aquilo que eles pensam que a América Latina é – uma nebulosa geográfica em que São Paulo e Buenos Aires são a mesma coisa e brasileiros ou argentinos podem chamar-se Pablo ou José da Silva indiferentemente. Dirigiu seu filme também ao rico potencial de consumo do espectador “gay”, que pôde encontrar em Molina o primeiro digno representante do martírio homossexual na tela. Hurt ganhou seu Oscar ainda sob a commotion da morte de Rock Hudson por AIDS, e é natural supor que a Academia precisava ser “politicamente correta”. A esse respeito, tampouco deve ter sido inocente a manipulação de um filme anti-semita que deixa Arregui indignado, porque sabe-se como esse tema é recompensado em Hollywood.

Independente de tudo, o filme é interessante e rico. Serve perfeitamente para esclarecer vertentes básicas do ideário afetivo e estético da homossexualidade, pondo nisso a devida ironia, devido à direção de um homem não comprometido com a preferência. Babenco mostra, em seu cinema, afeto declarado por marginais e perdedores. E os homossexuais, com devaneios e fantasias que os colocam em contramão permanente – especialmente esses que, como Molina, idealizam um amante heterossexual, como se fossem as célebres “mulheres falhadas” - pouco podem contra uma realidade majoritariamente heterossexual, o que os torna singularmente trágicos e solitários. A quem nada de real é possível, só resta o romantismo. Um desejo que não pode ser reconhecido socialmente terá forçosamente que embelezar-se com as quimeras do melodrama, da predestinação e das “razões do coração”, superiores à de qualquer tecido sócio-político.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
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