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A estrela fosca e o paraíso irrecuperável

por Chico Lopes *
publicado em 03/07/2004.

O velho dilema de um diretor adaptar satisfatoriamente um livro consagrado - uma obra-prima literária, na verdade - rondava a produção A hora da estrela (1985), adaptação feita por Suzana Amaral do livro de Clarice Lispector que fora o seu último grande trabalho. Como transformar metalinguagem especificamente literária em imagens era a preocupação inevitável no ar, e especialmente quando já se tinha lido bastante o livro, como eu, que tive, durante um bom tempo, o culto à linguagem de Clarice. Havia também a suspeita aos esforços do cinema brasileiro para pôr a literatura nacional nas telas, apesar de alguns acertos bem apreciáveis nos anos 60, como Vidas secas e Macunaíma.

Tendo que olhar para trás e considerar o que foi, para mim, o cinema brasileiro, devo repetir que sempre compartilhei, com o público, daqueles sentimentos contraditórios - um certo orgulho patriótico misturado a uma aversão pelos filmes tecnicamente mal feitos, com aquele som por vezes ininteligível, e também alguma admiração e muita implicância com os filmes demasiadamente alegóricos e políticos do Cinema Novo. Mas, eu entendia bem o que o Cinema Novo queria, sentia sua necessidade, sua vitalidade, levando em conta que, pelo que vira de alguns filmes da Vera Cruz, era decididamente necessário eu me opor àquele simulacro de Hollywood com diálogos ridículos e tentativas de fazer "bom cinema burguês". Alguns daqueles filmes - Tico-tico no fubá, por exemplo, uma exaltação ao interior brejeiro de Zequinha de Abreu - tinham-me ficado na memória como boa nostalgia, mas Anselmo Duarte era um ator lamentável e Tônia Carrero uma mulher afetada demais para meu gosto. Debaixo da ditadura, entendia a brasilidade mais crua do Cinema Novo e, por dever de intelecto e rebeldia, embarcava nele.

Mas nunca deixei de achar que, em cinema, éramos pretensiosos e acidentados.

A hora da estrela foi uma surpresa para mim, porque artesanalmente superior (ou, pelo menos, não tão esculhambado). O filme não ficou abaixo do livro. A saga para lá de melancólica da nordestina Macabéia foi bem adaptada, e a supressão do narrador masculino que havia no livro - um Rodrigo S.M, que revelava sua intenção de contar a história de uma nordestina e tinha peso decisivo na narrativa - não atraiçoava o original.

A coitadeza terrível de Macabéia podia deixar o filme sempre a um milímetro da pieguice, o que a diretora Suzana Amaral compreendeu, enveredando pelo humor e pelo grotesco e adotando um tom discreto e distante para que a compaixão excessiva não fizesse a coisa desandar em dramalhão. Só não precisava daquele final, com a infeliz feliz, depois da morte por atropelamento, em câmera lenta. Bastava terminar no plano de seus miseráveis sapatinhos de borracha depois do acidente.

O que comove em A hora da estrela é que sabemos, sentimos que o Brasil é um país cheio de macabéias, e a transposição do cenário original do livro - o Rio - para São Paulo, também foi um acerto, devido ao peso da imigração nordestina na capital paulista. Essas figuras que por vezes passam por nós, anônimas, espezinhadas ao último grau, com um primarismo tão profundo que chegam a parecer algo entre santas e idiotas, quem não as conhece? Vítimas de políticos assistencialistas, de famílias que se desintegram sem remédio e cujos restos permanecem obstinadamente sentimentais, de uma imprensa ilimitadamente cruel com os que não têm nada, assustam, fazem pensar nos pecados de uma classe dominante que, decididamente, muda muito pouco, em função de uma ou outra novidade ideológica cosmética, fazendo sempre questão de manter as diferenças que a privilegiam.

O Brasil de Macabéia é bem um país de Dostoiévsky, não por acaso um dos autores favoritos de Clarice, aliás citado na novela original. Com personagens assim pode-se fazer obras-primas, mas também pode-se fazer dramas sociais que acabam por justificar a filantropia barata como mal menor, indispensável, tão grande é a nossa miséria.

Mas, ainda no livro, Macabéia deixa de ser fenômeno exclusivamente brasileiro: acaba por ganhar estatura de símbolo ontológico, de um arquétipo universal, revelando uma pobreza que é mais que essa, clássica, do nordestino-com-fome - é uma espécie de nudez inapelável da Criatura. Ela é o ser em crua perplexidade dentro de um mundo hostil, incompreensível, minuciosamente adverso, inassimilável, e aí nos lembramos do Kaspar Hauser de Herzog.

Temos essa mulher sem graça, sem recursos, coitada para além de toda coitadeza, empregada como datilógrafa "cata-milho", engabelada por uma colega de trabalho loira, prática, sem escrúpulos, uma piranha de pequena classe média. Namora um nordestino machão primário e também oportunista, vaga por uma São Paulo que nunca poderá ser minimamente sua, parando diante de vitrines, sempre encantada e estupefata com tudo.

Mal se reconhece como ser humano, ela. É apenas uma vaga entidade de carne e osso para a qual tudo é estranho, significativo, tudo é desejável e nada é possível.

Sua feiúra é paradoxalmente uma espécie de beleza, de homenagem ao escrúpulo, à delicadeza, um pedido de desculpas por estar no mundo. Ela tem a grandeza dessas almas que naturalmente não querem nem podem ser nada além do que são - um fio de identidade oprimido por um mundo armado, consciente, com propósitos utilitários os mais ríspidos.

É um nada diante de milhões de conveniências alheias - todos têm razão e ela, espanto.

É particularmente pungente a cena em que tenta cantar para seu namorado uma música que ouviu no rádio - nada menos que Una furtiva lacrima, com Caruso - e ele cala a voz infeliz com um tapa. Mas, não se rebela. O machão ordinário já lhe parece o máximo - fez o impensável: interessou-se por ela. Temporariamente, como bem veremos.

O destino de Macabéia é o estrelato apenas na hora da morte, hora em que qualquer criatura humana, mesmo a mais próxima ao piolho, tem lá o seu quinhão natural de Transcendência. Uma cartomante (picareta, para variar) lhe profetizou um noivo rico e uma nova vida. Haveria um homem estrangeiro - e ela garante que "todos os gringos têm dinheiro" - à sua espera. Isso proporciona a última seqüência, quando um homem bem vestido, com ares de estrangeiro, se prepara para apanhar a sua Mercedes em algum ponto da cidade, e ela segue, aturdida de felicidade pelas ruas, ao encontro da realização da profecia. A estrela que ela alcançará será essa: a do símbolo da marca famosa do carro que a triturará no asfalto. Que outro destino seria possível?

A grandeza em pequena escala

Produção de 1985 também, com uma singeleza e um ar de despretensão, baixo orçamento e independência que lhe davam um calor especial, foi O regresso para Bountiful, dirigida por Peter Masterson. Último filme da atriz Geraldine Page, que pelo papel recebeu um Oscar, irradiava uma integridade que novamente levava a pensar nisso - bom cinema não precisa ser mais que uma boa idéia, uma boa história amarrada com rigor e capaz de passar um drama humano sem apelação, interpretado por atores entre a solidez profissional e o brilho do grande talento, com sentimentos na dosagem exata. Isso, naturalmente, foi sentido por muita gente em muitas épocas, mas é uma fórmula simples só na aparência. Dá em teleplays com ares de "lição de vida" ou em outros pequenos filmes com temas "humanos", em geral de família, com toques naturalistas áridos e resoluções enfadonhas. Mas o trunfo de lidarem com alguma coisa básica, fundamental, permanece - é só que os bons resultados são escassos, e talvez por isso nos fiquem na memória.

Em O regresso para Bountiful, o tema é o amor à terra natal, a que se quer regressar como a uma espécie de Paraíso Perdido. A ele junta-se outro bom tema - o da solidão do velho, drama que pode render muitíssimo.

Geraldine Page, uma idosa simplória e, naturalmente, já um pouco senil, vive com o filho e a nora chata, mas volta e meia tenta fugir de casa, com um dinheirinho que junta escondido.

O filho é um americano comum, subjugado pela mulher fútil e tirânica, e, entre ela e a mãe, gostaria de não ter que fazer escolha alguma - a velhinha, claro, é um trambolho, está naquela fase em que as recordações da infância retornam, onipotentes, vive como uma inútil, sente-se um estorvo. Sua única esperança é regressar a Bountiful, ao passado idealizado, talvez porque pressinta a proximidade da morte e precise despedir-se de seu Éden particular, o único bem que acreditou ter neste mundo.

Mas, Bountiful nem existe mais. Ao conseguir fugir pateticamente e pegar um ônibus como uma garotinha travessa, ela ficará sabendo que o lugar nem está no mapa, que fica entre uma e outra parada com nome em placa e que terá de chegar lá a pé. Não importa: coloca toda a sua vida nisso. Mesmo seguida por um delegado a mando do filho e da nora, insiste em atingir Bountiful. Apenas um condado, uma fazendola, a última moradora do lugar pereceu (com a casa) num incêndio.

Ao chegar lá, tem que constatar que tudo está abandonado. Lembra-se das coisas queridas, deixa-se perder em devaneios. É observada pelo filho, o delegado e a nora. Só lhe resta, depois de satisfeito o desejo do regresso, despedir-se das árvores, da terra, deixar Bountiful.

Nada mais simples que essa historinha que parece um episódio doméstico, inócuo, na vida de uma velhinha pacata cuja rebeldia se assenta numa aspiração tão prosaica. Mas, Geraldine Page dá ao papel uma tamanha dignidade e a direção é tão segura que temos a sensação de termos visto o que já se chamou de "fatia de vida" - dessa vez, sem ironia ou menosprezo.

Somos levados a pensar na frase de Proust: "Os verdadeiros paraísos são aqueles que perdemos". Completamo-la com a certeza de que, dentro de nós, eles conservam certa forma eternamente, contanto que pelo menos a sua lembrança não seja perdida.

O que de fato temos que fazer, a uma certa altura, é dar adeus a eles enquanto objetos fincados em dada parte do mundo, enquanto referências objetivas. Não vamos reencontrá-los mais lá, onde os conhecemos, com aquela mesma forma - até porque o próprio saudosismo os desfigurou consideravelmente e qualquer substituição que tenham sofrido será uma traição inaceitável - e infalível, visto que toda realidade é um acúmulo de desmentidos ao desejo e à idealização.

Esses lugares que queremos tanto, que já morreram objetivamente, morrerão conosco como um certo olhar, um certo dia, um lampejo de comunhão perfeita entre Alma e Mundo, uma intraduzível lição de identidade, com todo o mistério que isso comporta. Justificarão o termos vivido.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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