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DE BADULAQUES E BUGIGANGAS
por Conrad Rose
*
publicado em 07/06/2004.
Qualquer mortal teria compaixão. Qualquer! Depois o desprezaria. Mas Deus não. Deus só via, nem compaixão tampouco desprezo; com complacência de telespectador e cheio de vontade de rir.
No plano mundano, após a aurora chegava a ambulância. Paramédicos carregaram o corpo febril e exausto.
Voltando gradativamente a si, o corpo provava a repercussão da obra de seu opositor. A lucidez intensificava os sentidos e tornava a absorção das dores quase impossível. Dores ósseas, musculares, indecifráveis, acumulativas e complementares. Seu algoz nada o preservara. Em seguida, antiinflamatórios e sedativo, e o corpo ainda ouvia o eco das expressões sacras do doutor quando a indústria farmacêutica assumiu o controle.
Entrava, então, num vai e volta sem fim. Cessando o sedativo, o corpo entorpecia de dor. Os olhos semi-ausentes presenciavam seu corpo – longinquamente – coberto por um pano branco chamuscado de vermelho. Gases, gesso e mercúrio-cromo, na verdade. Sentia-se noiva currada. Pior era o cheiro: água sanitária com esparadrapo. Uma perna suspensa. O compasso lerdo e cardíaco e eletrificado.
E não tardava a chegar a enfermeira para depurá-lo. Enterrava-lhe o polegar na pálpebra, erguendo-a; pressionava-lhe o punho com a outra mão. Constatando-o vivo, fincava-lhe a seringa novamente.
Há muito, quando chegara da roça com uma carta de referência do pai e pouquíssimos pertences – quase badulaques, fora de imediato ao encontro do padrinho que o conduzira à labuta; um frigorífico de médio porte.
Passados alguns dias, padrinho e afilhado já despendiam juntos a maior parte de suas horas de ócio. O afilhado descobria a cidade e sua vasta podridão. Primeiro as mulheres, onde despejava em torno de um terço de seu salário. Destilados para acompanhar. Tabaco e algumas drogas, mas nada relevante.
Ia do frigorífico para o bar, do bar para a zona e da zona para o quarto de pensão em que o padrinho o depositara. Assim correram meses.
O afilhado prosperava. Três meses no frigorífico e já fora promovido. No quinto, livrara-se do incômodo de carregar bovinos nas costas. Passara a cuidar das contas a pagar da empresa. O padrinho muito se orgulhava.
Certa data, o padrinho o levara para o carteado, mas prevenira-o do vício. Charutos, mulheres insinuantes, uma redonda mesa verde, bebida e fichas replicantes. Nos momentos de grande tensão, na definição da rodada, o ambiente carregado mais parecia o interior de um elevador lotado ou a sala de espera de um oncologista. A aflição e a ansiedade foram determinantes para o afilhado. E naquela data ele dobrara o seu salário.
O jogo entrara no roteiro. Trabalho, bar, jogo, zona, pensão. Trabalho, bar, jogo, pensão. Trabalho, jogo, pensão. Trabalho, jogo, trabalho. Jogo, trabalho, jogo. Jogo.
Cavalos, roleta, poker, pife, palito, vídeo bingo, caça-níqueis, pingüim, loterias e rifas. O padrinho aconselhava-o a largar, retomar a vida. Dizia que o melhor era casar-se. Ele até procurava encontrar uma esposa a contento, mas todas caíam fora quando o vício era deflagrado.
Porém, Raquel comprara a briga. Mulher espaçosa, pronta para a guerra. Sangue siciliano. O afilhado vidrara nas volumosas mamas da dita. Comia na mão de Raquel.
Trabalho, pensão, trabalho, pensão, trabalho, casa. Casa! O afilhado comprara uma casa enfim. Um aconchego, um lar, uma morada, um endereço. Ela nutria-lhe; e na rua, ou alguma festa, ela ostentava-o como troféu; ele, sentia-se um poodle branco vigiado pela coleira. Entretanto, isso não fazia importância. Pelo menos enquanto ele se divertia com as suntuosas tetas de sua dona. Nunca trepara tanto. O afilhado encarava os urros, uivos, gemidos, sussurros e palavrões como contrapeso ao poodle branco. O prazer vencia.
O problema é que peito toda hora enjoa. Demora – porque o par gera o revezamento -, mas acaba enjoando. Para piorar, o afilhado havia voltado a carregar carcaças. E, no momento em que ele não via mais graça nenhuma em nenhum dos dois apêndices, entrou o ciúme. Como bom jogador, virou o jogo. O afilhado passou a vigiá-la. Obstinou-se. A princípio a siciliana relutara, mas duas semanas sem sexo e algumas surras surtiram efeito. Raquel rendera-se, contera-se, encolhera-se e enclausurara-se; e o afilhado folgara-se. Voltara a jogar, colecionava amantes e penhorava tudo o que tinha para penhorar.
Quanto aos peitos, ele notara que vagarosamente eles iam enfraquecendo, cedendo, caindo. Perderam volume também, já que a dona mal comia. Por fim secaram. O afilhado definhara a siciliana.
Não dá para jogar sem cacife. É regra. O padrinho havia alertado. Sem cacife e sem sorte.
Dos credores, primeiro a compaixão; depois, o prazo findara, a dívida não. A surra quitara. Aí, dos credores, somente desprezo.
E agora estava ele ali, esfolado, arranhado, inchado, infeccionado, dopado; mas fora voltando a si, ou quase, que apodrecera definitivamente.
A siciliana trazia-lhe suas poucas bugigangas. Era o que lhe cabia da partilha. Ela estava impecável, devidamente maquiada, ereta e suspensa num salto-agulha; rebolado compassado e muito swing. Até os peitos mostravam-se animados.
Ela depositou um saco plástico próximo ao corpo inerte, sorriu de canto, e fugiu dele sem pressa alguma.
Sobre o Autor
Conrad Rose: Conrad Rose é um escritor paranaense que observa o comportamento humano e brinca com sua paisagem. Atualmente ministra oficinas de criação literária em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro.Email: conradrose@hotmail.com
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