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Herzog: em defesa da desrazão pura
por Chico Lopes
*
publicado em 15/05/2004.
Poucas vezes na minha vida vi um filme com uma abertura tão bonita: um campo de feno que ondula como um oceano vegetal ao vento e uma pergunta inquietante: “Todos esses ruídos em torno de nós não poderão também significar – Silêncio?”.
Herzog se aproveita de uma história alemã (que parece tão controvertida como uma lenda), já abordada pelo escritor Jacob Wassermann em A preguiça do coração, para transmitir sua noção pessimista de Cultura e Civilização. Volta-se para o fenômeno de um homem criado feito bicho, no fundo de uma adega, com um olhar cru e poético, duro e compassivo, como quem buscasse obstinadamente as verdades assustadoras que podem jazer sob o tecido social, as regras de convívio e bom senso dos “civilizados”.
Para começar, uma civilização que deixa um homem ser abandonado como Kaspar o foi já é uma anormalidade. É ela que tem ser contestada, não seus desgarrados. O cineasta aí se inscreve numa alta linhagem de pensamento alemão, herdeiro de um romantismo que vem de Novális e se opõe, feroz, aos freios da Razão, e, se resvala numa pieguice à Rousseau, consegue escapar mais ou menos ileso ao sentimentalismo. O tema era, sem dúvida, ingrato, propício e tentador demais à melodramatização, mas uma certa frieza – ela também germânica – o reabilita.
O romantismo intempestivo de Herzog é patente. A escolha de seus personagens o denota: são desajustados, derrotados ou párias absolutos, gente em desacordo com o mundo não por esclarecimento culto e racional, mas por uma espécie de desajustamento inato, orgânico.
Kaspar é um extremo de incomunicabilidade e inadaptação. Em desamparo completo, é tirado do fundo da adega por um sujeito misterioso que põe-no em contato com os homens e depois, tão misteriosamente como o trouxera à luz, ressurge para lhe dar fim. Não explica nada: age.
Se interrogássemos quem nos criou, que silêncio mais hostil! Na verdade, esse agente da Cultura e da Civilização é um símbolo rico. Parece uma encarnação de nossa ambigüidade, da maneira contraditória com que acabamos por trucidar aquilo que cultivamos. É o Pai Assassino, e Kaspar é mero joguete tanto de sua proteção quanto de sua truculência.
Herzog, como alemão romântico, endereça à sociedade a mesma interrogação que ia de Novális a Freud, contestando com aspereza e lirismo teutônicos essa cultura que relegou a vida real, instintiva, emocional, a uma condição de pesadelo. É também o mal-estar do expressionismo avançado, que parece provir tanto deste mundo quanto do Além, cotidiano e transcendência se confundindo em nítida perplexidade.
Kaspar é deixado no centro de uma aldeia, na madrugada, segurando um livro de orações e uma patética carta de apresentação. É uma cena de grande força e beleza. Depois, veremos uma coisa em que o filme é pródigo: o mal-entendido como traço fundamental de nossa cultura. Um funcionário de justiça indaga da procedência de Kaspar e, ante a mudez deste, sugere um nome de cidade que o infeliz, capaz apenas de imitar, repete. O eco é lavrado como verdade documental por um anão-burocrata que, com sua meticulosidade estúpida, parece um símbolo da aridez mecânica da ordem e da legalidade. Preocupado obsessivamente com seus relatórios, ele representa a eficiência bitolada, essa que sempre se ateve não à verdade, mas à conveniência da forma.
Uma pergunta se impõe: não serão todas as coisas documentadas e relatadas uma grande distorção dos fatos ou tão somente uma interpretação de coisas cuja verdade original fica totalmente nublada, perdida? De pergunta em pergunta, podemos chegar à perplexidade máxima de não sabermos em que mundo estamos e se todo o nosso entendimento não passará de um erro grosseiro de premissa. Nietzche bem o dizia: “Não conhecemos fatos, mas interpretações.”
Evidentemente, Kaspar se torna objeto da curiosidade popular e, como um louco de aldeia, sofre tanto com a estupidez e a crueldade quanto com a compaixão geral. Amorfo, passivo, ignorante dos jogos consensuais de crueldade, é um objeto sobre o qual cada um pode projetar suas fantasias e temores. Há cenas perfeitas: garotos gozadores entram em sua cela e amedrontam-no com uma simples galinha; encostam-lhe uma vela ao rosto e ele não reage – fascinado pela chama, quer pegá-la, e, ao fazê-lo, a queimadura provoca-lhe lágrimas silenciosas. Acaba num circo, exibido como uma aberração, ao lado de outros infelizes, anunciado como um dos quatro enigmas do mundo (os outros três são o pequeno Mozart, garoto-prodígio que vive em busca de uma cavidade no solo para fugir, um índio dos Andes e um rei-anão de um reinado imaginário). Os quatro enigmas fogem do circo, e então vemos o que se dará ao longo do filme: Kaspar quer lugares fechados, cubículos, cantinhos onde possa reencontrar o conforto primitivo da adega, o útero insalubre de onde fora abruptamente tirado.
Com um protetor mais humano, aprende a falar, tocar música, ter maneiras. Mas a bondade desse protetor é equívoca – não por ser inautêntica, mas por ser parte da ordem cultural para a qual Kaspar Hausers são incômodos pelo simples fato de existirem. É o que acontece: ele faz perguntas que ninguém pode responder, pois não são perguntas que se faça, já que desorganizam o mundo conhecido, contestam a lógica trivial, desafiam a ciência e destoam dos costumes com sua pureza, sua radicalidade simples. De que vale a boa vontade comum de seu protetor diante do excepcional? A regra verdadeira é a solidão absoluta, o desconsolo, a comunicação como fonte de mal-entendido. As “boas almas” não sabem a que forças destrutivas podem, com excelentes intenções, servir obedientemente.
Um homossexual pedante tenta apresentá-lo à sociedade mais refinada como um prodígio. Ele, que aprendera a tocar piano, falha na execução de uma valsa de Mozart porque não pode tocá-la como um virtuose e sim apenas como um apreciador apaixonado, um tímido amador. O afetado culto se irrita, e o rejeita. Falta a Kaspar uma capacidade de fingir que é a pedra de toque de todas as relações humanas. A cultura existe, afinal de contas, para contornar a crueza das coisas ou para nomeá-la e tentar domá-la.
E também a tão decantada Natureza é fria para com esse herói: ele planta seu nome com folhas de agrião e uma garça o come. Herzog nos dá, então, a visão da garça engolindo, pacífica e impessoalmente, uma rã. A Natureza é isso – impessoalidade, crueza, a sobrevivência do mais forte acima de tudo, nenhuma ilusão é permitida.
“Tenho a impressão de que a minha entrada no mundo de vocês foi como uma queda brusca”, diz ele a seu benfeitor. O homem do início, que o tirara da adega, reaparece para eliminá-lo a pauladas. Na agonia, ele conta um sonho enigmático, com teor de parábola (que ninguém consegue entender). Se “Deus fala pela boca dos inocentes”, é impossível, na verdade, saber o que os inocentes querem dizer. Mas há aí um dado interessante: sendo primitivo e puro, Kaspar sente um dever de transparência social, não aprendeu a guardar segredo de sua subjetividade e tem a iluminação, a vidência natural dos que não foram ainda embotados pelo superego, pela cultura. Conta o que pode, oferece o que sente. Naturalmente, o inteligível – que é um cálculo – pode lhe ser uma categoria estranha.
“Não conhecemos fatos, mas interpretações”. Na autópsia de Kaspar, descobre-se que seu cérebro tinha uma anomalia indecifrável para o saber dos doutores da época. Portanto, o anão-burocrata lavra que o que ele tinha era loucura e nada mais. Satisfeito com a realização de seu fanatismo burocrático, decide dispensar uma carruagem e ir para casa caminhando, com um andar alegre.
Rendidos à estupidez
O que é isso – sombras na água, fundo de espelho, imagens em vidro no vago da névoa, o quê? Sucedem-se os créditos, cheguei atrasado, Stroszeck já começou. Essa abertura é um verdadeiro primor de imagem: não se consegue atinar com o que poderia ser essa sombra móvel, flutuando em superfície ou fundo indefiníveis. A fonte do efeito, por fim revelada, é uma bolinha de cristal insignificante na mesa da sala do diretor do presídio onde Stroszeck se encontra, a sombra era a sua. Provado fica que uma ilusão cinematográfica pode ser levada a um tal extremo que o espectador se perca num mar de incerteza, numa miragem absoluta, abstrata, até que o diretor revele a fonte do artifício, que pode ser o mais trivial dos menores objetos. Que arma escapista o cinema não é!
Stroszeck parece ser a história de Bruno S., o ator que interpretou Kaspar Hauser. Ao sair da cadeia, esse presidiário ouve do diretor uma arenga moralista para que não volte a beber. Mas à saída do presídio já há, quase contígua, uma cervejaria. No fundo, um vício é ainda um pouco de vida. Haverá razão decente pela qual se deva preservar corpo e alma num mundo como o nosso? Viver já não é irremediável o bastante?
Stroszeck gosta de uma prostituta, Eva, constantemente espancada por dois escroques que a exploram. Tenta ajudá-la, fica a seu lado curando-lhe as feridas, querendo umas migalhas de carinho. Herzog é muito verdadeiro: Eva é uma prostituta totalmente crível, humana, mostrada com uma crueza em que não falta, contudo, um certo lirismo. Mas, não é uma Cabíria – o que mais transmite é cansaço, apatia, frieza, náusea. Na verdade, mantém uma relação masoquista com seus espancadores e Stroszeck lhe parece meio incômodo com sua ternura e sua dedicação de vira-lata.
A esse desencontrado casal “outsider” vai juntar-se um velhinho estranho, portador de um corvo, fã de Beethoven, o mesmo ator que fizera o anão-burocrata em Kaspar Hauser. O trio está desiludido com a feérica e gélida Berlim, o velhinho tem um sobrinho que “venceu” na América (é um simples dono de uma oficina mecânica) e para lá eles resolvem se mudar. Stroszeck não pode mais viver tocando acordeon nos pátios de edifícios e Eva não quer mais ser espancada. O casal sofre humilhações físicas incríveis, mostradas sem ênfase, violências que nas mãos de outros diretores renderiam virtuosismos de câmera, mas que com Herzog aparecem fria e objetivamente, com a mesma displicente objetividade que permeia os atos mais cruéis e os torna de uma gratuidade infernal. A violência dos espancadores parece uma espécie de insaciabilidade inerente ao tédio descomunal que a vida lhes faz sentir.
O trio patético emigra. Vemos New York, e depois há uma viagem silenciosa para o interior ao som de By the time I get to Phoenix. Já na entrada, a América reservava uma surpresa desagradável ao velhinho lunático: na alfândega, confiscam-lhe o corvo. Mas o trio tem o otimismo ingênuo dos desbravadores do Velho Oeste – ou uma simples vontade de viver que não é vencida facilmente pela maré adversa – e prossegue, cheio de esperança. Herzog é um pessimista lírico, alterna ironia gelada e lúcida compaixão no trato de seus personagens. Mas é muito sombrio, sua pouca poesia é ríspida, seu humor é pesado, caracteristicamente alemão, sua filosofia é bruta e visionária.
Nossos emigrantes conhecem então a América dos sonhos de democracia, livre iniciativa e vida farta. Trabalhando, Stroszeck, Eva e o velhinho compram um “trailer”, com todos os confortos. Depressa se vêem apertados para pagar as prestações e Eva passa de garçonete a prostituta novamente, para tentar cobrir a dívida. O “trailer” acaba sendo retomado por um banco e leiloado com frenética indiferença por uma espécie de “cow-boy”. Stroszeck sofre novo golpe: Eva se interessa por um caminhoneiro rumo ao Canadá, deixando-o de lado sem muita contemplação. O caminhoneiro parece um símbolo da América vista por Herzog – vulgar, gordão, satisfeito, arrogante e competitivo.A terra dos sonhos do trio é um blefe em todos os sentidos.
Stroszeck e o velhinho se desesperam. Pateticamente, para comer, fazem um assalto, e agem como se quisessem vingar-se da desapropriação do “trailer”, o velhinho indignado com o que lhe parece uma conspiração suja. Enquanto Stroszeck compra comida com o dinheiro roubado, ele é preso, protestando inutilmente contra tudo. Não são solenes, essas pequenas calamidades; têm como pano de fundo um “muzak” irritante, histérico, que esmaga com seu torpor idiota gestos e ações. A América zomba cruelmente de quem acredita nela. Sua trilha sonora é esse lixo banal, repetitivo, grotesco, impiedoso, gratuito. A estupidez, a monumentalidade vazia, o “kitsch”, o tédio frenético, a violência pela busca cega do lucro são o seu verdadeiro rosto.
Stroszeck foge num carro velho, sem rumo, devidamente abastecido de latas de cerveja. Acaba deixando o carro pegar fogo e passeia, desnorteado, com um fuzil. Entra num parque de diversões, tentando compensar seu fracasso com os entretenimentos disponíveis. A cara é sempre a mesma – um misto de inércia, estupidez e tristeza, os olhos fixos de estupor, embriaguez e uma como que debilidade mental irremediável.
Poucos filmes serão tão frios e verdadeiros como este. Não há realmente saída para párias ingênuos como Stroszeck. Fica no parque, idiotizado, andando de lá para cá num teleférico, o fuzil no ombro, tomando cerveja, enquanto a polícia chega para prendê-lo, pois fizera algumas atrações do parque funcionarem sem parar, numa sabotagem impotente. As atrações: uma galinha que dança, um coelho chefe de bombeiros, um pato que toca piano. A América é infantil, infantil e cruel, ama o grotesco, o bizarro, o brinquedo de corda, o artificialismo barato. A América é essa doença de puerilidade congênita que se traduz em consumismo, atrocidade displicente e mentalidade de videogame. Assim um alemão a vê.
A última imagem do filme ilustra tudo, “claro enigma”: a galinha dançarina, com o mecanismo em pane, não pode parar de dançar, e haverá algo mais estúpido, condicionado e triste que uma galinha? Lembremo-nos que uma delas é usada para assustar o pobre Kaspar Hauser. A de Stroszeck, ironiza e emblematiza o desespero de outro coitado tipicamente herzoguiano – romântico e obtuso.
Essa galinha é a própria América – inútil, de mau gosto, condicionada à Pavlov e vazia. Retrata o próprio destino de um herói que procura inutilmente dar sentido a uma vida desde o início predestinada ao pane, ao gratuito, ao irrisório, de um pobre joguete de uma mecânica cruel que não leva em mínima consideração sua essência humana.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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