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Modernidade (4. Comunicação)

por André Carlos Salzano Masini *
publicado em 31/03/2004.

Um dia desses, andando pela rua Rio Grande do Sul, eu vi à distância duas adolescentes. Elas vinham caminhando lado a lado, do jeito que todas as amigas sempre fizeram, mas algo havia de diferente:

Não falavam entre si, não sorriam, não gesticulavam. Não mostravam nenhum dos trejeitos e expressões tão graciosas que as moças exibem quando conversam sobre meninos, ou roupas, ou outras coisas mais.

Seus olhos vinham parados, perdidos em alguma distância abstrata. Neles não havia interesse pelo que estava em volta; não viam o caminho, as árvores, a calçada, as pessoas...

Eram duas jovens saudáveis, caminhando com seus corpos físicos ali presentes, mas com suas mentes perdidas em algum lugar etéreo, muito longe dali...

Cada uma delas falava em um telefone celular, que era segurado com a mão oposta ao lado que a amiga estava. Suas cabeças estavam voltadas para os aparelhos, uma dando as costas à outra.

Assim passaram por mim e sumiram na distância.

Eu me pus a recordar como eram as minhas voltas para casa, depois da aula, em minha adolescência:

Caminhar, esperar o ônibus, sentar, observar a janela... tudo em absoluto silêncio.

É certo que por vezes eu estive ansioso para chegar, tirar o uniforme, encontrar os amigos da rua... mas não havia nada que eu pudesse fazer para chegar mais rápido. Não estava a meu alcance alterar o ritmo daquele percurso.

Acostumei que, naquele momento do dia, eu tinha que me aquietar; e cotidianamente repeti aquela viagem em silêncio, apenas observando o que havia em volta...

Hoje, recordo aqueles percursos onde "não havia nada para fazer" como alguns dos momentos mais gostosos de minha juventude. Pode parecer um contra-senso... mas, talvez, a correria dos outros momentos tenha sido tão grande, que eu nem os tenha percebido passar. Na escola não havia um instante para respirar. Em casa havia os amigos, milhares de coisas para fazer, a televisão... Talvez aqueles surrados percursos de ida e volta tenham sido os únicos instantes em que eu realmente estive comigo; e até hoje eu me lembro nitidamente de alguns dos pensamentos que ali me ocorreram.

É claro que durante as viagens eu não tinha nada de "urgente" para dizer a ninguém. Mas se eu tivesse tido em mãos um "artefato fantástico" como um "telefone celular", com certeza "coisas urgentes" teriam surgido, e aqueles importantes momentos de que hoje me recordo, jamais teriam existido.

É curioso como o tempo altera as coisas. Olhando para trás, descobrimos que quase tudo que imaginávamos "urgente" tinha na verdade muito pouca importância, e que algumas pequenas coisas que pareciam "insignificantes" eram tudo o que realmente importava.

Observo minha cachorrinha, que passa grande parte do dia apenas deitada no sofá: alerta, mas sem fazer absolutamente nada. Para o mundo globalizado de hoje, isso parece uma inaceitável "perda de tempo", mas eu, lentamente, começo a compreender que isso é a Vida!

Nós, humanos, parecemos ter uma inclinação para evitar esses momentos de introspecção, que são a Vida, e buscarmos incessantes distrações: tvs, celulares, computadores, "comunicação"...

Não é irônico que toda essa "comunicação" acabe nos afastando de nós mesmos... e das outras pessoas... e, em última instância, do mundo?

Eu passo meus dias em um turbilhão, na internet, cuidando da Casa da Cultura, conectado com os quatro cantos do mundo. Mas quando o dia termina tenho a nítida sensação de que não fiz absolutamente nada, e, acima de tudo, de que não vivi!

Outro dia, minha filha Talita, de dois anos, começou a chorar na hora de dormir. Para acalmá-la, eu fiz com minha mão um nosso conhecido personagem que chamamos de "o bicho". Ela parou de chorar, abraçou "o bicho", e se acalmou. Mas não dormiu. Por mais de uma hora eu fiquei ao lado do berço, de braço estendido, oferecendo-lhe a companhia do "bicho".

Daqui a vinte anos, sei que nada lembrarei dos milhares de dias que passei em atividade frenética na internet... mas jamais esquecerei daquela hora de absoluta quietude, no escuro, com minha filha e "o bicho".

Devemos ter cuidado com os "fantásticos recursos" do mundo moderno. Pois a Vida que existe em cada um de nós não precisa deles, mas precisa absolutamente do tempo que eles roubam de nós.


Sobre o Autor

André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.

Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.

contato: andre@casadacultura.org

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