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Iremos voltar, literalmente, a comer os mortos?

por Leopoldo Viana Batista Júnior *
publicado em 22/03/2004.

Resta comprovado, por estudos antropológicos, que o homem, quando ser extremamente primitivo, isso há alguns milhares de anos, já tecia lutas por territórios para sobrevivência do seu clã ou tribo.

Isso se deu há muito tempo. Ou melhor, há muito tempo se se levar em consideração a nossa (humana) medida de tempo na terra.

Naquelas batalhas, os derrotados, mortos, cediam, além dos seus territórios de caça e suas grutas de proteção, suas próprias carnes para serem comidas, literalmente, pelos vencedores. Assim, pelo menos o resultado da contenda entre os grupos era aproveitado mesmo que na forma de alimentos pelos vencedores.

Mas, o que se vê atualmente?

Para nossa imensa tristeza, mesmo após a descoberta da roda, da pólvora, do nascimento e morte das cultas civilizações egípcia, grega, romana, inca, e tantas e tantas outras; mesmo após o nascimento dos mais iluminados homens, como Buda, Platão, Abraão, Jesus Cristo, Maomé, Gandhi e tantos outros; não obstante o fenômeno das grandes descobertas e navegações, o uso da penicilina, os achados para cura de diversas doenças, até mesmo da clonagem das espécies, o homem continua hoje tão bárbaro como aquele do passado atestado pela antropologia.

E são os "antropólogos modernos", os jornalistas de todas as matizes, que noticiam, em mídias as mais distintas, a continuidade daquilo que chamamos de barbárie dos nossos antepassados.

Qual a diferença entre nós e os antigos, senão para melhor destes últimos quando em estudo comparado? Qual a distinção entre aquela e a nossa civilização? Em que somos melhores, ou menos "bárbaros" do que os nossos ancestrais?

Ora. Continuamos matando indiscriminadamente e em massa pelos menos motivos, por território ou, pela mais notável criação dos "atuais civilizados", por nossas crenças. Extinguimos socialmente e economicamente nações que divergem dos nossos interesses. Restringimos o comércio entre os povos, quando somos contrariados. Espoliamos as riquezas das nações mais indefesas. Explodimos nossos semelhantes graciosamente, ora para demonstrar poderio bélico, ora para demonstrar nossa insatisfação religiosa ou política, interna ou externa, em resumo, matamos absolutamente por nada, como se fôssemos diferentes uns dos outros, como se, internamente, nossos corpos possuíssem diferenças de cores, de órgãos, de sistemas, apenas porque originários de nações diferentes.

E pior: matamos e deixamos apodrecer nossos semelhantes, sem sequer nos dignarmos a comê-los. Nenhuma serventia tem aquela massa de proteínas disformes espalhadas pelos chãos, em pedaços pendurados em cercas de arame e fios elétricos; nas varandas de prédios; sobre carros carbonizados; absorvidas nos esgotos urbanos ou expostas em vitrines de lojas e terraços de restaurantes; em trens ou em resquícios de habitações dos assassinados.

Qual a diferença entre nós?

Quem atualmente, componente desta sociedade, poderia ser chamado de civilizado, se somos nós, em última forma, que toleramos ou patrocinamos aqueles que nos conduzem? Mais apropriado não seria chamar de civilizados aqueles, nossos espíritos ancestrais, que, parecendo mais dignos que os atuais, ao menos se alimentavam dos mortos, dando-lhes honraria final porque serviram, em consolo, como alimento?

Ou seríamos nós, autodenominados de civilizados, porque avançados tecnologicamente - o que, em tese, nos traria melhor qualidade de vida - quando matamos covardemente, em terror patrocinado pela iniciativa privada ou pelos estados "soberanos", quando abandonamos os "inimigos" mortos sem sequer utilizá-los como proteína?

E isso é o que chamamos de sociedade moderna! A chamada civilização! Proteção aos direitos humanos? Balela. Afeto social? Retórica. Como chamarmos de civilizados homens que impõem fronteiras onde elas nunca existiram? Como imaginar cercas neste tão pequenino planeta, esgotável, quando naturalmente elas não existem, senão na cabeça dos mais civilizados? Como encontrar e valorizar diferenças, a ponto de matar, em razão de conceitos absolutamente abstratos como religião? Como, por fim, matar deliberadamente um seu semelhante porque professa ele um entendimento sobrenatural diferente daqueles em que acreditamos?

Oxalá pudéssemos voltar à barbárie. Sinto muitíssimo afirmar.

É que as regras sociais e de guerra estariam bem mais claras para os homens. Porque depois de tantos anos de sociedade organizada, é para lá que caminhamos a passos largos. Uma lástima essa constatação. Após tantas inglórias e gloriosas lutas pelo direito, pela lei, pela igualdade entre os povos, pela liberdade de manifestação do pensamento por exemplo, voltamos, mesmo titulares dessa tecnologia extraordinária, a testemunhar o desdém de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, possuem o poder de interferir no processo de autodestruição da humanidade.

Sobre o Autor

Leopoldo Viana Batista Júnior: Cronista.
Autor do Livro: Estrada de Barro para Ladeira de Pedra.
Advogado da CAIXA em João Pessoa/PB.
Professor Universitário e Ex-Conselheiro Estadual da OAB/PB.


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