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Um pé atrás diante do rótulo de "clássico"
por Chico Lopes
*
publicado em 18/11/2009.
Claro que são episódios isolados e que há muita coisa boa à venda. Mas, no tocante a decepções, são paradigmáticos os filmes de Sarita Montiel que adquiri, como "La Violetera" e "A rainha do Chantecler", com imagens desbotadas e som horrível. Além disso, são dramalhões tão terríveis que só se pode rir de um dia eles terem nos feito chorar e o que os salva é o charme e a voz de Sarita, que foi um mito espanhol no cinema e era mesmo uma estrela, mas nunca uma atriz. Mas certas coisas só se percebe mesmo em retrospectos maduros.
Um bom auxiliar para mim, nesses casos, tem sido os guias de DVD lançados por Rubens Ewald Filho, que sempre esclarecem quando as cópias se encontram em mau estado. Há decepções de outra ordem, também, mas aí o risco advém da publicidade excessiva em torno de algumas produções e da badalação que receberam junto a alguns críticos e de nossa própria suscetibilidade a essas coisas - ninguém que cede ao saudosismo escapa a cometer equívocos embaraçosos. Sob o rótulo de "clássico", na verdade, o mercado de DVDs, muito útil e precioso por seus filmes e extras indispensáveis, tem empurrado muita coisa ruim para o público. Ou, quando não é ruim, serve apenas para os que são muito complacentes com suas emoções; bastaria só um pouquinho de senso crítico e a saudade toda iria por água abaixo.
EQUÍVOCO DE DOUGLAS SIRK
Exemplo de filme que pode seduzir e enganar é "Sinfonia interrompida", uma daquelas produções da Universal dos anos 50 que hoje em dia acabaram sendo superestimadas pela crítica porque seu diretor, Douglas Sirk, foi revalorizado por Fassbinder e outros e colocado num panteão honroso. Bem, Sirk fez coisas boas, mas fez também muita coisa "matada" e duvidosa como esse filme, estrelado por June Allyson e Rossano Brazzi.
Ela é uma americana típica (ninguém parece tão americana típica quanto a housewife sorridente Allyson, símbolo da caretice ianque dos anos 50) que vai para a Alemanha e, em Munique, conhece um temperamental regente de orquestra (o clichê é infalível) vivido por Brazzi. Ele teria que passar por alemão, mas como é impossível fazer Brazzi parecer um, os roteiristas optaram por torná-lo metade italiano de nascimento (sic). Ele é casado em circunstâncias meio estranhas, mas Allyson se apaixona por ele. O curioso é que Brazzi, que havia feito papel semelhante em "Quando floresce o coração", parecia predestinado a ser o italiano de caráter dúbio que encanta americanas (ele é o Renato que deixa a solteirona Katherine embasbacada em Veneza). Aqui, tal como no caso de "Quando o coração floresce", Allyson conclui que ele não é homem com quem uma americana direita deva se casar. O casal de atores não tem a menor química, é embaraçoso, e o filme só se salva por uma boa fotografia e a trilha sonora que nos leva até Salzburgo para ouvir Mozart. Mas, quem esperar muito dessa produção, quebrará a cara solenemente.
BOGART E HEPBURN EM ESTADO DE GRAÇA
Isto sim é nostalgia de primeira, disponível nas bancas - "Uma aventura na África". A cópia que vi tinha erros de tradução grotescos, mas nada consegue prejudicar um filme com Katharine Hepburn e Humphrey Bogart em estado de graça, a mais perfeita comédia romântica com boas doses de aventura e algum drama que já existiu.
Bogart ganhou um Oscar por esse papel, e nada parece tão justo e merecido. Ele é incrível como o aventureiro bebum que desce os rios africanos na Primeira Guerra Mundial e, numa dessas, colhe Hepburn como a puritana irmã de um pastor inglês que sobreviveu a um ataque dos alemães. O convívio de duas figuras tão antagônicas no barco é de tirar o chapéu - a gente se esbalda com o filme, porque é evidente que Hepburn e Bogart nunca se divertiram tanto e nunca um caso de amor implausível pareceu tão delicioso.
Quando se vê um filme desses, e quando se compara com o que passa por comédia romântica hoje em dia, dá uma vontade irresistível de repetir o que Peter Bogdanovitch disse: "Os bons filmes já foram todos feitos". Realmente, submetidos a Adam Sandlers e Lindsay Lohans, estamos numa época infeliz...
SADO-MASOQUISMO DE LUXO
Outro equívoco comum nas bancas é tomar por "clássicos" filmes de um passado mais recente (por exemplo, os anos 70) que, em sua época, foram recebidos com boa dose de rejeição, e por bons motivos. É o caso de "O porteiro da noite", filme de 1974 realizado pela italiana Liliana Cavani que teve certo sucesso de "escândalo" naquela década e parecia bastante ousado, mostrando o caso de amor sado-masoquista entre uma judia e seu torturador nazista, que ela reencontra anos depois quando, casada, vai parar num hotel podre de chique de Viena.
Mas o filme todo é mais podre que chique, embora embale com muita "estética de filme europeu de arte" o peixe estragado que vende. É como um "Nove semanas e meia de amor", a mesma coisa afetada e vazia, o amor de dois "peixes mortos" pervertidos cuja humanidade nos interessa tanto quanto a de um abajur.
Dirk Bogarde é o porteiro e, bom ator em alguns filmes, nesses apresenta o seu pior defeito: aquele arquear de sobrancelhas e aquele biquinho de supremo desprezo pela humanidade que só parece fruto de um egoísmo esnobe. Ele contracena com Charlotte Rampling que, jovem e linda, é boa de olhar, mas é só. O filme é suntuoso pela fotografia e por ter Mozart na trilha sonora ("A flauta mágica" é a ópera em reapresentação, quando os dois se reencontram). Mas é curiosamente de uma complacência terrível com o nazismo e seus fetiches, parecendo um álbum pornográfico daqueles que se popularizaram entre os gays, principalmente, nos anos 70 e 80, pelo sado-masoquismo dos uniformes e aparatos nazistas dos SS. Portanto, o filme parece criticar alguma coisa, mas é ele próprio aquilo que ele mais critica.
A COBRA CORAL DE TIERNEY
A prova de que a volta dos clássicos verdadeiros em DVD é excelente são dois DVDs primorosos de Gene Tierney que se pode encontrar no mercado. No primeiro, nem é preciso dizer, ela é "Laura", personagem-título no que é seu filme mais famoso. No segundo, ela é a psicótica Ellen em "Amar foi minha ruína", melodrama de suspense de John M. Stahl que resistiu muito bem ao tempo.
"Amar foi minha ruína", de 1945 parece dramalhão e é mesmo, mas é um dramalhão contraditório e matizado e traz a primeira encarnação de um caso letal de femme fatale psicopata, no cinema. E, como essa mulher é Tierney, com sua beleza para lá de qualquer adjetivo, o filme tem um carisma incrível - apresenta-nos uma cobra coral com todas as suas cores vivas mortais. Amar Ellen é inevitável, e é o que acontece com o personagem do escritor vivido por Cornell Wilde, canastrão, mas adequado como peixe fisgado pela doidona sans merci. O filme é até atualíssimo, porque os crimes de Ellen são de uma frieza acentuada que não parecia comum nos cinema dos anos 40. Nos extras de "Laura", o espectador conhecerá algo mais sobre Gene Tierney num documentário que só por si justifica a aquisição dos dois discos.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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Email: franlopes54@terra.com.br
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