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Rodrigo Lacerda: um romance sem medo do leitor comum
por Chico Lopes
*
publicado em 04/07/2009.
Quem leu "O mistério do leão rampante" ou "Vista do Rio" tem dito da "força do estilo" de Lacerda, e aí, em "Outra vida" (Alfaguara, 180 ps.), é que fui conhecê-la. Não dá para desgrudar das páginas, do que vai sendo descrito com uma minúcia que parte do físico para a psicologia e volta desta para aquele, sempre com uma precisão de quem sabe as melhores palavras ou meditou sobre elas, revolveu vocábulos, padeceu para encontrar o mais adequado. Assim, o leitor fica ligadíssimo naqueles personagens - o marido, a mulher e a filha.
Lacerda disse, em entrevista a Ronaldo Correa de Brito, que estava cansado de alguns leitores acharem que seus romances eram autobiográficos e que por isso deixou de lado os nomes. Nesse caso, na crítica, a tendência é achar que o autor lida com arquétipos, o Marido, a Esposa, o Filho. E tudo tende a ganhar maiúsculas, realmente, a ficar baço e vago na elasticidade genérica do que cai na abstração. É uma das armadilhas sonsas postas no caminho de quem cria romances. O "arquetípico" dá um tom solene e pomposo a coisas tolas e tem a presunção de revestir de ouro o que é opaco e banal. Felizmente, não acontece isso no romance de Lacerda, que às vezes derrapa um pouco na generalidade, tão universais os personagens parecem ser (e nem é de estranhar que, de tão redundante o terreno, surja na cabeça da mulher, em dado momento, um enorme e abusivo clichê como "as aparências enganam"). Mas há uma proposta leal, de tocar no leitor comum, nesse livro: desenha-se um mundo conhecido por maridos e mulheres, o do casamento que se desfaz (e que, quando estava ainda em pé, também era trôpego), do filho aturdido que está no meio.
* * *
Com pretensões a classe média alta, um casal se esboroa. Tudo isso vai transcorrendo numa rodoviária, onde o casal deverá, dentro de algum tempo (e a narração adota um suspense de "Matar ou morrer", medido pelo relógio), pegar um ônibus e voltar para a cidade onde o marido nasceu.
Ele faz uma jornada regressiva, descontente com a vida que tinha com a mulher no que parece ser uma das maiores capitais brasileiras. A mulher está detestando que isso aconteça, mas ele se envolveu num escândalo de licitação fraudada, foi violentamente humilhado (o ápice disso está na perversidade de pintarem uma cartolina, a ser exibida por sua filha numa festinha na escola, onde está escrito, sem que a menina saiba, "Fora, corrupto") e tenta voltar à cidade pequena, ao seu mundo simples idealizado, familiar, limitado, mas seu. Ela tem que segui-lo, mas está totalmente contrariada, e ainda por cima ameaçada por um amante que pode aparecer a qualquer momento na rodoviária para impedir que essa coisa terrível - que ela volte a uma vidinha tão medíocre, na concepção metropolitana deslumbrada dos dois - aconteça.
A vida outra que atrai seu marido é tudo que a mulher mais abomina. Ela encarna a típica citadina com ambições cada vez mais entranhadas na linha de ascensão pessoal metropolitana, mulher de shoppings, vaidades obsessivas (é muito bonita e desejada), com as previsíveis fumaças do feminismo de revistas especializadas, querendo que o marido seja outra coisa que não esse ogro que, interiorano demais, a seu ver, não se ajusta à sua visão de mundo muito asséptica e hipócrita, o de "gente bem de cidade grande" - uma visão em que toda concessão à aparência prostituída e envernizada é supervalorizada.
Na verdade, o personagem é antipático. Para evitar a vilanização total dessa mulher, Lacerda trabalhou conscientemente em sua psicologia, mas o resultado é conflitante, porque é óbvio que o marido é muito superior a ela, tem uma personalidade mais vulnerável, mais tocante, mais próxima ao básico da vida - ele erra, ele parece uma força primitiva, torta e trôpega num salão de objetos chiques que podem cair a qualquer sopro ou com qualquer presença menos inorgânica, mas se porta com coração, humanidade, enfim. Não importa que tenha preconceitos contra os "gays" e classifique de "sapatões" as mulheres que dão para escritoras - isso não está longe do que os homens de seu tipo pensam: ele é inteiro e seus reducionismos grosseiros são um ingrediente inevitável da inteireza. E, mesmo sendo um personagem à beira do clichê (porque tem um pai açougueiro, mas é quase como se ele próprio o fosse, com um físico talhado para a profissão, ou para o que se imagina um açougueiro típico), é uma figura cativante. Um pouco do estilo e da profundeza da psicologia de Lacerda, pode ser vista neste trecho em que, na sala de parto, o personagem se depara com um médico baixinho e frágil, e o autor explora com engenhosidade o contraste:
"O médico, incomodado pelo barulho, de novo sem nem desviar os olhos do que fazia, repreendeu-o por baixo da máscara com uma rispidez abrupta, concisa e um pouco humilhante até, sendo ele quem era na situação. O sujeito, baixo e infinitamente mais fraco e frágil, abusava da autoridade científica como um cachorrinho de madame latindo para um imenso vira-lata. Podia ser dos melhores, podia ter diploma de que falasse outra língua, dominar inseminações e sofisticados tratamentos de fertilização, mas sua figura empertigada e esganiçada, sua covardia social, em alguém feito aquele pai, com tamanho para humilhar qualquer homem em qualquer lugar, causavam uma antipatia extra, legitimada pela grandeza de quem concede em não usar suas armas, pela indignação de ver outros usando sem cerimônia as que têm, e reforçada pelo complexo de quem teme a própria agressividade."
Quem escreve algo assim, com precisão e passando da psicologia individual para a social, não é um escritor qualquer.
* * *
"Outra vida" trata de uma cena brasileira que vamos achando cada vez mais parecida com vidas conhecidas, com nossa própria vida. A identificação ou o reconhecimento satisfatório do leitor quanto a essas figuras é imediata (eu, pelo menos, achei-me inserido de tal modo na narrativa que comecei a vagar mentalmente pelo terminal rodoviário do Tietê, com minhas lembranças pessoais). A prosa de Lacerda se instala no presente, registra, capta e revela com o realismo naturalista de uma câmera cinematográfica - muito exata em lidar com situações exteriores, mas dando esse salto de psicologia que o Cinema ainda não consegue dar totalmente, apalpando almas pelo lado de dentro.
Tudo converge para o acontecimento que se desenrola ali: uma espera do ônibus que chegará. O escritor pinta os fatos antecedentes, retrocede ao passado, aos episódios decisivos da vida do casal (tentando se esquivar à banalidade corrosiva que o tema propicia) com naturalidade, e nos coloca na mesma posição de espera dos personagens, só podendo contar com o imprevisível. Há nisso uma situação muito propícia a roteiro de cinema. E mesmo o personagem da mulher, em alguns momentos, me fez pensar naquela Jeanne Moreau que vaga por Roma no "A noite", de Antonioni, dissipando as horas, fugindo a uma relação ruim com o marido. Há sim uma incomunicabilidade de cinema de Antonioni no marido e na mulher pintados por Lacerda, e os conflitos, mal-entendidos e torpezas mantidas em segredo terão um desfecho muito lógico - mais direto e vigoroso que o cinema do diretor, no entanto.
Quanto a satisfazer o leitor comum (o que parece, a uma parte da crítica, um pecado capital, visto que o desprezo pela leitura fácil, fluente, chega a paroxismos nessa gente), não há nada de errado nem abusivamente concessivo no tratamento de Lacerda. Ele propõe, ao contrário do mundo falso e unidimensional dos best-sellers, ambigüidades, situações em aberto, coisas muito parecidas ao pesadelo comum da vida, este em que nos movemos sem saber para onde ir e sobre cuja falta de rumo as filosofices demagógicas, as boas intenções religiosas e cantilenas ideológicas de qualquer partido não fazem o menor efeito.
As ameaças de sentimentalismo e dramalhão estão ali, mas também estão perto de nós, na vida, e isso o tempo todo - um romance que se distancie demais disso dá nesses artefatos intelectualizados, niilistas e "fragmentários" que muita gente se compraz em produzir indefinidamente sem jamais atingir público algum. Lacerda não escapou a certas derrapadas no rebarbativo, mas isso não prejudicou o efeito de conjunto da obra.
Vale ler este livro. Há muita honestidade intelectual e existencial nele. E não vou me esquecer desse pai, grandalhão delicado, mais maternal que muita mãe, que só quer ser fiel às suas limitações e carregar a sua filha para um horizonte mais limpo.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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