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O peso trágico do atavismo na melhor ficção brasileira de 2008.

por Chico Lopes *
publicado em 08/01/2009.

Para mim, o melhor livro em prosa de ficção, no gênero romance, de 2008, foi "Galiléia", de Ronaldo Correia de Brito. Mais: para mim, ele é um grande talento literário que se confirma, já que, desde que li seu livro de contos "Faca" (Cosac & Naify, 2003), senti que estava diante de um autor peculiar. Os contos de "Faca" exibiam um domínio da palavra que considero raro entre os escritores brasileiros de anos recentes. Senti que estava diante de um escritor que assimilara a atmosfera nordestina com a mesma secura cortante de um Graciliano Ramos, mas se situava em seu tempo e tinha coisas a dizer para a geração atual, visto que Brito, nascido no Ceará e morador do Recife, é um homem com pés inevitavelmente enfiados no presente e teria que continuar na senda do chamado regionalismo - rótulo muito difuso e propenso a equívocos - por outros olhares.

"Galiléia" é bem isso - uma visão do atavismo, que nos parecia típica do "nordestinismo", por assim dizer, retorna, mas em escombros irônicos, em formas de pesadelo. A leitura do romance me deu uma enorme satisfação - fui vendo que o terreno era conhecido, mas olhado sem complacência e refrescado pelo que sabemos e aprendemos no presente, sem inocência, sem lirismos e fetiches de opressores/oprimidos para satisfazer ideologias toscas.

O sertão de "Galileia" tem celulares, lan houses e prostitutas e prostitutos jovens carregados por caminhoneiros, a miséria não mudou, o atavismo pesa tragicamente sobre tudo, mas é possível deitar um olhar contemporâneo talentoso sobre ele. Mais ainda: "regionalismo" é uma palavra que retorna no livro, mas breve e ironicamente, em dado trecho no qual o personagem Adonias, voz óbvia de Brito, diz que a questão não importa ao povo miúdo e desesperado de modo algum. Aliás, o mundo dos cultos, dos literatos et caterva é, de certo modo, dinamitado pelo desespero que percorre o livro, muito marcado pela constatação de que, numa realidade dominada pela tecnologia e o mais atroz mercantilismo, artistas são apenas criaturas impotentes que dialogam com fantasmas e não lhes resta senão espernear.

O que se tem é o retorno dos primos Ismael, Davi e Adonias para a terra, onde um avô tipicamente grande patriarca (pensa-se até naquele avô decrépito e bêbado do Luís da Silva de "Angústia") está morrendo. Claro, trata-se do retrato de todo um mundo, todo um passado em agonia, e nem seria preciso ter lido Faulkner para senti-lo e sabê-lo. O retorno se dá numa caminhonete onde os três ouvem música do tipo Radiohead e Adonias fica o tempo todo tentando se comunicar por celular com a mulher, Joana, devidamente metropolitana. Os três são figuras de um mundo globalizado que jamais teriam entrado num romance de Graciliano, e uma das maiores ironias do livro é o fato de essas figuras fazerem uma marcha regressiva descarada, retornando a um mundo onde o anacronismo petrificador é que dá o tom. São como "urbanóides" mais ou menos sofisticados, brasileiros de classe média metropolitana perdendo a maquilagem e voltando a ser o que nunca teriam deixado de ser, em essência. Adonias, com o celular na mão, é como alguém tentando, desesperadamente, manter um fio de cordão umbilical com um mundo no qual se inseriu de modo racional enquanto vai sendo carregado, por atração inevitável, para aquilo que traz dentro de si: o passado sombrio que não pode ser removido de modo algum e, revisto, poderá ser um vertiginoso desmentido de toda a "modernidade" que ele adquiriu. Ele se agarra ao celular de maneira muito sintomática ao longo de toda a narrativa.

Uma coisa excelente, entre as tantas outras, de "Galileia", é que a gente sente em Brito uma disposição consciente para parodiar certas formas de romance com as quais o seu vai se parecendo - por exemplo, com as figuras fantasmagóricas, curvadas pelo anacronismo, da literatura do "realismo mágico" sul-americano, que em Garcia Marquez pareceram fundadoras, mas foram degenerando em mero exotismo comercial na mistura de "magia & insólito" aproveitada pelo mercado editorial em diluidores como Isabel Allende. Os fantasmas, os mortos com que Adonias vai se deparar e travar conversas terríveis, de modo algum são "líricos" e estão à vontade em "Galileia": seu desespero e sua mesquinhez dão mais calafrios que os dos filmes de terror ou dos livros indulgentes e pastosos de Allende & Cia. Os diálogos são secos, desprovidos de qualquer piedade. Esse retorno ao passado é pesado e implacável, mas tem que ser feito, ainda que contra toda a vontade dos personagens que, na verdade, são criaturas despedaçadas, fincadas no mundo atual, mas com fundamentos tão arraigados na paisagem, nos destroços nordestinos, que não têm como estabelecerem uma identidade sólida com a qual se contrapor ao que quer que seja.

Vão emergindo revelações de traições conjugais, desejos, homicídios, homossexualidade (e numa visão nada edulcorada, mostrando claramente a ascensão de um homem que se dá a outros por interesses imediatos e brutais e por um narcisismo sem remédio) e todos estão implicados em tudo. Há espelhos desdobrados por toda parte, aliás, cacos que pouco se prestam a miragens de Narciso.

É um livro e tanto, esse "Galileia". Eu, particularmente, me senti reconciliado com o prazer de ler boa prosa de ficção brasileira no tempo que dediquei a ele. A narrativa gruda, absorve, e nos dá uma satisfação adulta, se bem que pessimista (e nisso Brito é muito Graciliano), de um pessimismo que nos parece uma visão não mais que correta de uma realidade arruinada e corrompida.

Certamente, não é um livro fadado ao sucesso de público porque, na tradição da melhor prosa contemporânea, não nos oferece soluções baratas, não propõe saídas, mas, tal como a vida real, novos mergulhos no emaranhado infernal em que estamos metidos, no qual um novo passo não é exatamente na direção da redenção, ainda que, no início, chegue a parecer. Nossos desejos, esperanças, apetites, nossos fantasmas, não nos permitem andar senão em círculos viciosos que se renovam de maneira sorrateira e ilusória, porque a grande sombra do Passado tece sempre novas ilusões momentaneamente sedutoras e o Mesmo tem suas astúcias para perpetuar-se. Neste particular, o final - de que naturalmente não falarei neste artigo - é um grande acerto.

"Galileia" foi publicado pela Alfaguara e tem 236 páginas que nunca perdem o interesse. A capa, de Mariane Newlands, é um achado perfeito: uma casa vazia, um corredor de portas sucessivas, o que seria um piso transformado, tomado por areal de deserto, por dunas. É um deserto que está lá dentro, sem dúvida alguma, nos personagens e em nós, que percorremos a narrativa com a impressão de que a sede vai prosseguir sem nenhum poço à vista.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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