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Relíquia dos anos 50 é a melhor tragédia do mestre de Fassbinder e Almodóvar

por Chico Lopes *
publicado em 12/06/2008.

O público adorava, nos anos 50, os melodramas da Universal que consagraram o diretor Douglas Sirk e lançaram o astro Rock Hudson: eram títulos como "Sublime obsessão", "Tudo que o céu permite", "Almas maculadas", "Imitação da vida", "Palavras ao vento". Hudson chegou ao estrelato com esses papéis, e por eles também ganhou certa fama de bonitão sem talento dramático que parece, em retrospecto, um pouco injusta pois, embora não fosse grande ator, era uma figura cinematograficamente apropriada e tinha competência. A crítica da época não levava esses filmes a sério, a despeito do enorme sucesso popular.

Por algum desses lapsos comerciais que não se compreende, esses filmes não existem em DVD no Brasil. Para suprir a lacuna, só a distribuidora Classic Line lançou um deles: "Palavras ao vento", de 1956.

Fico impressionado com o pouco senso de oportunidade dessas distribuidoras. É claro que "Imitação da vida", por exemplo, faria um sucesso extraordinário junto ao público mais nostálgico. Sempre é lembrado pelo funeral, em que se ouve cantar Mahalia Jackson, pelo clima de tragédia sobre amor e racismo, e, quando se cita Lana Turner para alguém, é por seu papel nesse filme que ela, belíssima mulher e atriz às vezes lastimável, é lembrada. Quanto a "Tudo que o céu permite" e "Sublime obsessão", são os filmes que marcaram Rock como astro típico de Sirk, e nos dois ele contracena com uma atriz esquecida, Jane Wyman.

"Tudo que o céu permite" teve uma espécie de versão pelo diretor Todd Haynes há alguns anos, "Longe do paraíso", que foi bem acolhida pela crítica, mais pela evocação de Sirk que pela qualidade do filme. O diretor Todd Haynes usou Juliane Moore e Dennis Quaid para contar a história de um casal trágico, cercado pelo preconceito: ela ama um jardineiro negro e ele, o marido, ama outro homem. Claro que houve distorção: em "Tudo que o céu permite", Jane Wyman é uma viúva jovem, numa cidadezinha americana arqui-conservadora, que se interessa por um jardineiro, o branco Rock Hudson, e sua família e amigos se opõem.

Haynes exagerou na dose em sua versão e o filme não é grande coisa, não pode superar nem de longe o original, já que certas coisas são feitas de contexto e época, realmente: Sirk transgredia a moral rígida dos anos 50 com habilidade e tecia pactos com o público sem deixar de colocar suas idéias. No caso da homossexualidade no filme de Haynes, o ator Dennis Quaid está bem, mas o personagem não existia no filme de Sirk, e a clareza dos tempos atuais, no tocante a esse assunto, é uma sentença de morte, em se tratando de uma estética de contenção, paródia perversa e distanciamento como a de Sirk - com a coisa revelada, perde-se uma tensão preciosa. Fica bom para o Gay Lib e péssimo para a Arte.

Em "Almas maculadas", o trio Rock Hudson-Dorothy Malone-Robert Stack deu as suas caras pela primeira vez. É aí que começou a nascer "Palavras ao vento".

HUMOR PERVERSO E PARÓDIA DOLORIDA

"Palavras ao vento" veio lamentavelmente desprovido dos extras que na edição original americana, da Criterion, são fartos. Ainda assim, a cópia é muito boa, e o filme é um pouco a quintessência, o resumo da obra de Douglas Sirk: um melodrama que roça a tragédia grega, tão carregado, perverso e ao mesmo tempo frio que sua atualidade não se perdeu. Curioso que, hoje em dia, Sirk tenha mais prestígio junto à crítica que com o público, que deve achar o seu trabalho muito próximo ao "novelão".

"Palavras ao vento" não economiza no over: começa pelo fim, quando o milionário bebum Kiley corre freneticamente pelos cenários de torres de petróleo de um Texas de estúdio com seu conversível amarelo (amarelo ao cubo; as cores dos filmes de Sirk são propositadamente exageradas) e entra em sua casa sob rajadas de vento, com folhas se esparramando até pela sala, seguindo-o, tudo ao som da música de Victor Young cantada pelo conjunto The Four Aces. Os três outros personagens do quarteto fatal - Mitch, Lucy e Marylee - estão à janela, olhando, ansiosos, à espera do desfecho. Sirk coloca o filme todo no início, em perfeita diagramação cenográfica. Repleto de back-projections e de coisas que outros diretores de menos talento achariam temerário fazer (o corredor rosa-choque do hotel em Miami é quase uma piada), o filme de Sirk é assim, um melodramalhão assumido em que tudo que importa é velado.

Essas folhas ao vento, tão apelativas e marcantes que depois foram imitadas em tantos filmes, não me saíam da memória de cinéfilo, mas não vi o filme e sim o seu trailer no velho cinema de minha cidade natal, no início dos anos 60. Vendo-o agora com a nitidez do DVD, vejo que Lauren Bacall, mulher charmosa, nunca foi grande atriz, que Rock não devia ter sido tão desprezado como ator, mas que o melhor do filme se concentra nos irmãos Kiley e Marylee, cripto-incestuosos, cheios de ódio um pelo outro, vividos por Robert Stack e Dorothy Malone (ela ganhou o Oscar de melhor coadjuvante por esse papel).

Rock Hudson and Dorothy Malone in Written on the WindStack é prodigioso, muito adequado para essa mistura de hilário, grotesco e sublime que define um personagem trágico. Malone é dominada por sua ninfomania de tal maneira que sua fúria, dançando de camisola enquanto o pai morre de enfarte numa escada, é algo para não se esquecer nunca. Fica para ela também aquele final quase abusivo, quando só lhe resta acariciar uma fálica torre de petróleo colocada na mesa de trabalho que pertenceu a seu pai. Em comparação com eles, Rock fica parecendo vacilante e careta demais e Lauren Bacall não parece ter entendido o seu papel, não põe nele toda a intensidade que poderia ter. Os dois formam o casal destinado ao happy-end, mas, quando se começa a pensar na história direito, vê-se que nada, nada é garantido, que tudo é ambíguo demais. Há interesses escusos, vãos e abismos demais em tudo - Bacall pode ter se casado só por interesse, Hudson, amado por Malone com desespero infrutífero, é talvez "amigo" demais de Stack (seu interesse por Bacall não nos soa convincente).

É ótimo que as novas gerações brasileiras possam conhecer Sirk, ainda que só por esse filme. Pedro Almodóvar confessa que viu "Palavras ao vento" inúmeras vezes e sempre revê, e é até possível constatar que, do exagero de cores da era consumista e industrial norte-americana que Sirk usa, com ajuda fundamental do fotógrafo Russell Metty, Pedro tirou inspiração para muitas das aberturas de um kitsch engraçado e revelador de seus filmes - há algo de "sirkiano", por exemplo, nas cores, nos adereços femininos, no apartamento e no táxi de "Mulheres à beira de um ataque de nervos". O alemão R.W Fassbinder, imensamente soturno e trágico, cultuava Sirk abertamente, e em "O desespero de Veronica Voss", isso é mais do que evidente.

E, francamente, é muito divertido, com o que se sabe hoje em dia, ver um personagem dizer a Rock Hudson que é hora de se casar, mas ele, se esquivando, alega: "Eu já tenho problemas suficientes com encontrar petróleo".

De coisas assim, o cinema de Sirk era feito. Mas a impressão final de "Palavras ao vento", a despeito de suas paródias, é de uma imensa seriedade e poesia.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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