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A América contra a caretice

por Noga Lubicz Sklar *
publicado em 12/01/2008.

"Não existe uma América negra. Não existe uma América branca. Não existe uma América latina ou uma América asiática. O que existe são os Estados Unidos da América", prega o mantra comunitário de Barack Obama a favor de um mundo civilizado.

"Maravilhoso, não?", comenta Ali Kamel em seu artigo "Obama" no Globo. "Tudo isso escrito e publicado por um político negro nos EUA. Que os Estados Unidos tenham um candidato negro, viável, e que pense assim, é em si um sinal de que se está mais perto do sonho de Martin Luther King", continua o Ali. E de alguns outros sonhos também. Um sonho ameaçado, no entanto, pelo conservadorismo americano, que embora dê sinais de algum desejo de mudança, ainda persiste na caretice. E persiste apesar de atitudes progressistas, que plantaram sua semente de modernidade há muito tempo atrás.

Não sei vocês, mas eu não sabia disso: o Ulisses de James Joyce, banido nos Estados Unidos sob a acusação de obscenidade, só foi publicado, em 1933, graças à sensibilidade do juiz federal John M. Woolsey.

"Foi por ter sido leal à sua técnica, e por ter tentado honestamente dizer o que pensavam seus personagens, que Joyce foi atacado e freqüentemente incompreendido. Foi sua tentativa honesta e sincera de atingir este objetivo que o levaram a usar certas palavras que são geralmente consideradas sujas e que levou ao que muitos julgam ser uma preocupação excessiva com sexo no pensamento dos personagens." Nossa. Eu não fazia idéia, caramba: imagino papai e mamãe lendo esse livro proibido, na Minas careta dos anos 1960.

"O caso de Ulisses", afirma o editor americano do romance, "marca um momento de virada. Foi eliminada a necessidade de hipocrisia e circunlóquio na literatura. Os escritores já não precisam buscar refúgio em eufemismos, e podem agora descrever as funções humanas básicas sem medo da lei." Uau. E eu que pensava que Joyce era um obscuro e seu romance, um complicadíssimo apanhado de neologismos incompreensíveis. Nada disso. É intuitivo. É bem-humorado. E acaba sendo sofisticado, imaginem, ao retratar sem nenhum subterfúgio, "com franqueza inédita", o pensamento fluente da "classe média baixa da Dublin de 1904".

No original em inglês dá pra ver a origem sonora dos tais neologismos, pinçados genialmente, se não me engano, da linguagem descuidada das ruas. A tradução de Houaiss confere ao texto, infelizmente, uma pretensão que o original não tem, e é por isso que estou lendo as duas versões ao mesmo tempo. Vou acabar maluca, mas vejam vocês: Ulisses é pura diversão intelectual, uma delícia. E eu que nem desconfiava disso.

Ainda não avancei muito, mas segue um dos meus trechos preferidos até agora (destaquei somente algumas frases):

"Um jornal. Gostava de ler no assento. Espero que nenhum macaco resolva bater no que estou....Agachado no trono dobrou seu jornal, virando as páginas sobre os joelhos nus. Algo novo e fácil. Sem pressa. Segura um pouco. Nosso bocado premiado. O Golpe de Mestre de Matcham. Escrito pelo Sr. Philip Beaufoy, do clube dos Freqüentadores de Teatro, Londres.

Leu calmamente, se controlando, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda...A meio caminho, vencendo a última resistência, permitiu que os intestinos se aliviassem calmamente enquanto lia, lendo ainda pacientemente, a leve constipação de ontem quase resolvida. Espero que não grande demais pra me dar hemorróidas de novo. Não, no ponto. Ah. Isso. Prisão-de-ventre um tablete de cáscara sagrada...Rasgou com firmeza metade do conto premiado e com isso se limpou. Depois levantou as calças, ajustou-as, se abotoou. Empurrou a idiota da porta desconjuntada da casinha e saiu das sombras para o ar livre.
"*

Gente. Isto é Joyce. Maravilhoso, não?

*A tradução é do Houaiss, hum, mais ou menos. Confesso que enfiei meu dedinho apressado e pretensioso nela.

Sobre o Autor

Noga Lubicz Sklar: Noga Lubicz Sklar é escritora. Graduou-se como arquiteta e foi designer de jóias, móveis e objetos; desde 2004 se dedica exclusivamente à literatura. Hierosgamos - Diário de uma Sedução, lançado na FLIP 2007 pela Giz Editorial, é seu segundo livro publicado e seu primeiro romance. Tem vários artigos publicados nas áreas de culinária e comportamento. Atualmente Noga se dedica à crônica do cotidiano escrevendo diariamente em seu blog.

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