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Loja de Bonecas I
por T.M. Castro
*
publicado em 22/11/2007.
Saltei, entrei na loja para examinar de perto as delicadas porcelanas, as luxuosas indumentárias, mas minha mente em retrocesso me fez ver as bonecas de minha infância. Repassei belos sorrisos e vestidinhos de tafetá, organza, sedas e flanelas, a depender da estação, e recordei brincadeiras de pega-esconde, chicotinho queimado, cirandas, e canções que não sei se ainda são entoadas, tais como, Atirei o pau no gato... Eu sou pobre, pobre , pobre, Terezinha de Jesus deu u´a queda e meu pensamento me levou para casamentos infelizes, orfandades devastadoras, mortes precoces, craques econômicos, faltas generalizadas, do teto à mesa, desgraças físicas e morais.
As bonecas que eu ora vislumbrava, voltei a mim, eram, contudo lindas, novinhas, finas porcelanas, mui bem maquiladas, mui bem ornadas; por isso esforcei-me por evocar brancos sorrisos, mantilhas alvas em rendadas primeiras comunhões, chapeuzinhos, aventais em lanches escolares, sólidas residências fincadas em tapetes azuis, róseos, vermelhos, verdes e que muitos fossem os matizes e as nuanças das cores, sempre havia a cada manhã um novo tom a provocar sublimadamente o borboletear de buliçosas e inquietas silhuetas.
Debalde meus esforços. Ao apreciar as encantadoras bonecas, acorriam-me à memória, com insistência, vidas desastradas, infelicitadas, vergonhosas e parcas, onde o sucesso, a abundância, os eventos fastigiosos eram favas contadas, e, por isso, um sorriso entredentes, amarelo, olhares inconclusos, ombros derreados, um como vai, um há quanto tempo e um inescondível contragosto no casual encontro.
E me assaltou as galerias da memória também o peculiar desfile de rotas bonecas a enfeitar toucadores, penteadeiras, aparadores, chame-se como se quiser aquelas mesinhas que sustentam em certos ambientes batons gelatinosos, colônias vulgares, cremes ásperos e sempre, sempre, uma boneca de decíduo e surrado aspecto no lado esquerdo do móvel, suja, a perder as cores, as vestes embotadas, testemunhando diuturnamente falsos risos, supostos encantamentos, inexistentes enlevos e, como não recordar, a sempiterna pergunta feita no instante em que a rota boneca era notada, constatada, assimilada, assim, Como que você caiu nesta vida? Você parece ter sido uma menina de família! E aí, as longas e falsas respostas dadas pela já experiente pécora a conduzir o curioso e momentâneo inquilino daquele corpo a um estado de espírito em que a piedade será a prótese a tomar o lugar do inexistente amor e de repente a infeliz entrega ao soldo de alguns réis, cruzeiros, cruzados, reais.
Assim tem sido ao longo do curso da história, em todos os países, cidades, vilas, corruptelas, desde os caldeus, persas, passando pelos gregos, etruscos, romanos, bizantinos, europeus e americanos em qualquer lugar e em qualquer época em que houver, de um lado, a prepotência masculina na distribuição das riquezas e oportunidades profissionais sob a forma de cuidados e zelo, e do outro, a mesma prepotência sob a forma de jugo, de intolerância de comportamento, de punição sob forma de abandono material por quem assumira com exclusividade o mando das coisas, de criminoso locupletamento na apreciação dos quinhões hereditários, e de vários outros expedientes que implicam a coisificação de seres economicamente improdutivos, qual as mulheres até bem recentemente (consta até o sacrifício do nascituro feminino em grande nação do Oriente, pois ...)
Protegidas por sólidas vidraças, eram guardadas sempre, entre mimos e sonhos, em ricos atavios, e preservadas do sentir, agir e pensar, tinham seus destinos traçados: o convento, o piano, o magistério, o programado casamento, funções que indicavam submissão e não admitiam desafios. Estáticas, mudas, aquiescentes nos gestos, assistiam com sorrisos fixos e tutorada admiração as oportunidades criadas pelo progresso da indústria e do comércio serem distribuídas entre os elementos masculinos daquele cristalizado mundo de então. Era vista com desconfiança e certa reprovação a desenvoltura das mulheres americanas quando começaram elas a assumir os postos secundários nos escritórios, ao lado dos homens, fenômenos que se faziam conhecer nos santuários familiares pelas poucas revistas ditas sadias e próprias.
A nova postura decorria da invenção da máquina de escrever, do almoxarifado, da arquivística etc. Até aí, entre nós, somente aquelas oriundas das camadas populares da sociedade haviam transposto as soleiras do lar paterno, absorvidas pelas funções primárias das fábricas, pelo serviço doméstico nos palacetes citadinos, ou quando eram expulsas da vitrina e invariavelmente acolhidas pelo serralho dos prostíbulos das cidades, sentença padrão firmada pelo pulso paterno às que se entregavam aos galanteios do primeiro namorado.
É fato indiscutível que até meados do século XX, antes de nos atingirem as mudanças de visão causadas pela Segunda Guerra Mundial, as mulheres de carne e osso tinham na porcelana os ditames de seus comportamentos, quais o atavio e a inflexibilidade de proceder. Parece-me natural, por isso, que as bonecas, diabólicos estafermos a sedimentarem, pelo exemplo que davam a suas mãezinhas de patética mudez e de estupidificante inércia, só me façam invocar o fracasso e a penúria.
Prossigo em minha jornada e dou-me conta da razão de pensamentos tão desmerecedores às bonecas. Sim, foi isto, recordo que o mundo feminino me chamou naquele dia à responsabilidade de cidadão e me cobrou cívica solidariedade, por haver ouvido no noticiarão radiofônico que a Câmara dos Deputados está apreciando desde então projeto de lei que torna explícito não ser crime a cessão do corpo humano para fins sexuais sob paga. Ora, essa potencial lei parece ter chegado com muito atraso, se pretende ser o vexilo da liberação feminina, e, por outro lado, expõe-se ao vexame do pomar sáfaro, donde nenhum fruto se colherá, pois o dar-se individualmente a mulher à prostituição, no Brasil - pelo menos desde a vigência do Código Penal da Republica - nunca foi crime.
Isso bem que merece ser tema de "Loja de Bonecas II", abrangendo unicamente as mulheres, pois não creio que os homens, vestibulandos na velha profissão, estejam ou venham a sofrer algum tipo de perseguição pelo casto Estado.
Sobre o Autor
T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br
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