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Solito, a Donzela e o Circo

por Antônio Ribeiro de Almeida *
publicado em 22/09/2003.

Em Serrana não havia ninguém que não conhecesse o Solito. Ele havia se convencido de que a missão da sua vida era ensinar a ler e a escrever às empregadas domésticas, e, entre elas, escolher a sua futura esposa. Filho do "seu" Jefe, um mestre escola famoso na Zona da Mata Mineira, queria de toda a forma seguir os passos de seu pai. Já havia chegado aos 40 anos e embora buscasse com afinco uma moça bonita e virtuosa para casar, essa "donzela" - era assim que chamava todas as moças - não havia aparecido até então. Todas as donzelas a quem fizera uma proposta de casamento, casamento na igreja e passado em cartório, negavam-se, sistematicamente, a unir suas vidas à vida do Solito. Mas ele não desistia da nobre missão e da busca da companheira. Aos olhos de alguns serranenses, espelhos impiedosos e frios do próximo, era visto como um boneco meio enjambrado, bobo e simplório. Lembrava o Pinochio quando saiu da oficina de Gepetto e ensaiava seus primeiros passos. Apesar de ter mais de um metro e oitenta, seus braços eram desproporcionais, e, quando caminhava, eles não seguiam harmoniosamente o movimento do corpo. Uma calva o obrigava a pentear os cabelos de um lado para o outro na tentativa fracassada de encobrir a careca.

Suas calças, mal passadas, não ficavam presas à cintura e após alguns passos, era obrigado a levantá-las além do umbigo, o que fazia com as duas mãos e apertando mais a correia de couro. Era, contudo, uma bela alma. Prestativo, atencioso para com as patroas, muitas vezes ia comprar pão e café na padaria, quando elas pediam.

Herdara do seu pai a Cartilha da Infância, de T. Galhardo, editada por volta de 1897 pela Livraria Francisco Alves e que já estava superada como didática para ensinar a ler e a escrever.As montanhas de Minas ainda eram uma barreira para as idéias e a nova cartilha que era usada em São Paulo e no Rio de Janeiro, a "Cartilha do Povo", de Lourenço Filho, não chegara a Serrana. Do espólio constavam ainda um pequeno quadro-negro, que carregava debaixo do braço quando ia ensinar, e o sobrado em que morava sozinho. Na solidão do seu quarto olhava-se no espelho e não se achava feio. Ria para o espelho e ensaiava muitas vezes o seu repertório para o sarau que apresentava após terminar a lição do dia e que era costumeiro naqueles anos. Ele constava de recitar uma poesia de Luiz Guimarães, "Visita à casa paterna" ou outras poesias de Castro Alves e Augusto dos Anjos.

Suas aulas eram dadas depois que a empregada havia servido o jantar, por volta das 8 horas da noite. Solito tinha quatro alunas naquele verão de 1938, mas o seu amor era Olinda. Olinda, uma ciganinha que Dona Ivone, viúva, havia criado e que lhe fora dada por uma troupe que passara por Serrana há mais de 18 anos e nunca mais voltara. Alta, de olhos esverdeados, da raça herdara o gosto por roupas de cores vivas e alegres e também de pendurar grandes brincos nas orelhas e pulseiras nos braços. Ela sabia de sua origem, mas considerava Dona Ivone como sua mãe.

Dona Ivone ainda não chegara aos cinqüenta e era uma mulher de meia altura, lábios carnosos e olhos azuis. A boca deixava transparecer uma sensualidade que o luto não conseguira reprimir. Seus seios pareciam querer saltar do sutiã, e aos olhos de um homem experiente ela era uma promessa de inesquecíveis noites de amor. Tendo a vida financeiramente organizada não se furtava a ganhar um dinheiro a mais e oferecer almoço a viajantes, alguns comerciários e até artistas de circos. Era também uma oportunidade de conhecer gente nova e sair de sua vida rotineira e insossa que levava como viúva exemplar. Há mais de seis anos enviuvara e continuava pranteando o finado Tiburcio e fazendo, mensalmente, visitas ao túmulo. Negara algumas propostas de casamento que recebera de fazendeiros e sempre dizia suspirando: "Homem como o Tibúrcio não vai nascer mais nesta terra".

Quando ia dar sua aula, Solito batia, pausadamente, na porta daquela casa da rua Padre Anchieta 1959, portando sua pedra de ardósia e a cartilha. Curvava-se um pouco quando cumprimentava Olinda e perguntava: "Como vai a donzela?" Era o quanto bastava para que Olinda começasse a rir, e, rindo, assentava numa carteira enquanto Solito colocava a pedra sobre uma mesinha. Abria a cartilha na qual as sílabas eram impressas e as palavras isoladas umas das outras. A aluna teria que reuni-las e dar o sentido da frase. Naquela noite, a ciganinha foi lendo sem ajuda do mestre: "O me-ni-no vê o ga-to. O ga-to vê o menino. Eu ve-jo o ga-to. Eu ve-jo o menino".Solito deu um caloroso muito bem e perguntou "E a Olinda vê quem mais?" Olinda olhou para Solito, meio desconfiada e foi perguntando:- "A banana na fruteira?" - Não! "";- O guarda-comida?- "Não e não!" O mestre foi ficando impaciente, pois era óbvia sua intenção que a ciganinha lhe respondesse - "O senhor, Solito."

A resposta não veio. O mestre achou que perdera a oportunidade de estabelecer um relacionamento mais íntimo com sua aluna. Na despedida ganhou, contudo, alma nova. Olinda deixou que sua mão quente e suada ficasse presa na grande mão do Solito. Rindo, voltou-se para dentro de casa, enquanto Solito caminhou apressadamente de volta para sua casa no Quebra. Antes de dormir ouvia, na Rádio Mayrink Veiga do Rio de Janeiro, as notícias e um programa de músicas populares onde brilhava Carmem Miranda com o Bando da Lua. Solito gostava, sobretudo, quando a "Pequena Notável" - nome que havia lhe dado o locutor César Ladeira, cantava a música "Ta-hi!" Solito a acompanhava cantando baixinho: "Eu fiz tudo pra você gostar de mim. Você tem, você tem que me dar seu coração. " Quando ia dormir fazia, escrupulosamente, o seu exame de consciência e a oração ao Anjo da Guarda, pedindo que se morresse naquela noite sua alma fosse levada para o céu. Seu Catolicismo era da criança que fora e que aprendera no Manual do Cristão, de Goffiné, amplamente usado nos anos 30 e que fora editado, originalmente, na França em 1690.

Um dia, após dar sua aula a Olinda, Solito surpreendeu sua pequena audiência ao dizer que iria recitar um soneto de um conterrâneo que trabalhava na Usina Rio Branco. Todos perguntaram quem era, mas Solito, fazendo um pouco de mistério, declarou que diria o seu nome depois que recitasse. Logo que se fez silêncio, Solito, limpando a garganta, começou:

-AMOR E ÓDIO


-Procuro esquecer-te e não posso.
-Quero odiar-te, mas te amo.
-Não quero ver-te, mas te chamo.
-Não quero e quero o amor nosso.

-Renegue-me, atire-me num fosso;
-E lá da profundeza eu te reclamo
-Eu te desprezo, te odeio, te difamo,
-E logo em meu coração te emposso.

-Procuro adivinhar o que se passa em mim.
-E fico sempre quase na mesma, Enfim,
-Entre o amor e o ódio, sem solução.

-E este amor desgraçado deixa-lo não sei.
-É mesmo um dilema que não alcancei.
-Pois não está em mim: mas no coração.


Durante todo o tempo em que declamou , Solito fixou, amorosamente, os olhos em Olinda. Ela retribuía o olhar, mas, de vez em quando, olhava em outra direção com temor de admoestação da patroa. O desempenho do Solito vinha do coração de uma forma tão convincente que empregada e patroa encheram os olhos de lágrimas.

- Sabem de quem é este soneto ?
- Não! Responderam juntas Dona Ivone e Olinda.
- É do nosso conterrâneo José Ribeiro de Almeida Sobrinho, que trabalha na Usina Central.
- Quem diria? É o "seu" José? Não desconfiava que ele tinha alma de poeta. E ele tem outras poesias, Solito? Perguntou Dona Ivone.
- Tem. Mas só me deu este soneto.
- Os outros, ele guarda a sete chaves e foram inspiradas por uma senhora daqui de Serrana. Eles foram escritos entre 1926 e 1927, isto é, quando ainda era solteiro.Disse-me ainda que eram loucuras da mocidade. Hoje, o "seu" José está casado com a Dona Alzira Córdova de Almeida, filha dos espanhóis da Colônia, e muito bem casado.


Todas ficaram curiosas em saber quem foi a musa do "seu" José, mas Solito não sabia e ninguém mais.

Depois daquele momento de forte emoção, ele cantava a marchinha "Periquitinho Verde" que era sucesso naquele ano de 1938 e fora gravada por Dircinha Batista para o Carnaval. Como cantor, vacilava, e na parte da letra que dizia "Pois se eu não caso, neste caso eu vou morrer" gaguejava sem parar e como um disco defeituoso de 78 rotações, quando a agulha não sai do lugar, ficava a repetir: "Se eu não caso-Se eu não caso-Se eu não caso " Suspendia o canto e entre humilhado e envergonhado pedia: "Minha senhora e donzela Olinda, desculpem a minha gagueira. Ela só vem nesta hora e não sei porquê. "

Terminado o sarau ele se despedia de Dona Ivone e Olinda, sempre com cavalheirismo, e voltava para sua casa.

Quando a Primavera chegou as árvores do Jardim e as dos quintais das casas vestiram-se de flores e um perfume adocicado enchia o ar. Solito gostava especialmente da Primavera e contemplava no Jardim, ou no terreiro de sua casa, as abelhas que voavam de flor em flor para buscar o pólen e o néctar das flores. Nas tardes, ia até o quintal de sua casa para melhor ouvir o canto de um sabiá-da-mata que saudava o morrer do dia nos altos de uma frondosa mangueira. E ali ficava, esquecido da vida, até que a noite chegasse.

Quando ia dar aula para Olinda escolhia uma flor e levava-a com extremo cuidado para a sua donzela. Na Primavera a única coisa que o desgostava eram os parques de diversão ou os circos que costumavam chegar naquela época do ano para estrearem em Serrana. A cidade perdia sua vida tranqüila e uma perigosa loucura tomava conta das cabeças dos meninos.No ano anterior, em muitos quintais, eles haviam improvisado trapézios, amarrados em galhos de árvores e tentavam repetir as façanhas dos trapezistas que se penduravam pelas pernas e davam saltos mortais. Chegavam, inclusive, a armar, com lençóis e cobertas, um pequeno circo no qual apresentavam, à luz de lampiões, espetáculos para a meninada da vizinhança. No fim da temporada, alguns moleques exibiam arranhões nas pernas e entorses que eram curados com água e sal e pomadas cujas fórmulas eram preparadas na farmácia do Sanches.

Olinda fizera grande progresso na leitura, na escrita e na tabuada. Aceitava os apertos de mão de Solito e os seus olhares apaixonados. Lia fluentemente até as fábulas e poesias de Olavo Bilac. Solito estava alegre e esperançoso que a ciganinha iria aceitar um compromisso de noivado e sobre isto já lhe falara. Ela ficou de pensar e dar resposta na outra semana. No dia dois de setembro os muros de Serrana amanheceram cobertos de cartazes que anunciavam para o dia da Pátria a estréia do Gran Circo dos Irmãos Temperani. Um circo tão grande como aquele nunca viera à cidade. A temporada seria de apenas sete dias e as grandes atrações como: o canhão com a bala humana, o globo da morte, os quatro diabos do trapézio e os palhaços Sorriso e Cartola. Pela primeira vez, em Serrana, um circo apresentaria teatro com a famosa peça "Amor e Preconceito", do mineiro Eurico Souto Vieira. No dia seguinte foram chegando os caminhões com as lonas, arquibancadas, e os mastros de armação. Dona Ivone atendeu o pedido do dono do circo, Guilherme Temperani, e ofereceu, a preços módicos, almoço para os principais artistas. Para isto ela contratou a Filisbina para ajudar a Olinda. Filisbina era uma preta dos seus cinqüenta anos, gorda, de saia rodada e cujos seios de tão grande despencavam da combinação; mas ninguém sabia preparar um frango ao molho pardo, com angu, feijão tropeiro, quiabo e couve, como ela. Quando servia este prato, no almoço, os artistas não se cansavam de elogiá-la. Eles não jantavam, e antes de executarem os seus números, tomavam apenas uma laranjada. Era uma exigência da arte circense.

A estréia estava marcada para o dia da Pátria, sete de setembro, uma quarta-feira. Os vizinhos se aglomeravam no portão da casa da Dona Ivone, na hora do almoço e tentavam adivinhar quem era a mulher bala, os palhaços, os trapezistas e o galã da peça de teatro. Mas eles passavam, conversando com um português arrastado que parecia ser mais língua de espanhol ou de italiano, e nem sequer davam atenção aos vizinhos que se afastavam para que eles entrassem para as refeições na casa de Dona Ivone. Com a mudança da rotina, Solito ficou muito aborrecido, pois Olinda não poderia assistir, naquela semana, sua aula e teria que trabalhar dobrado na cozinha para atender os artistas. Prometeu a Solito que depois que o circo fosse embora daria uma resposta definitiva ao seu pedido de noivado. No dia 6 de setembro o circo estava armado numa área da Água Limpa junto ao Capim Cheiroso. Serrana só tinha um assunto: o circo. Nos bares, nas vendas, na Usina Central, nos bancos do Jardim, no Éden Clube e nas casas, os serranenses duvidavam que uma mulher entrasse num canhão e saísse viva de lá ou que no globo da morte os motociclistas não se chocariam mortalmente. Na véspera da estréia o palhaço Sorriso, andando com de pernas de pau de mais de quatro metros e acompanhado por um grupo de meninos, ia convidando os serranenses para a estréia do circo e anunciando as atrações. Com a sua corneta ele perguntava e a molecada respondia :

- "Amanhã tem espetáculo?".
- Tem, sim sinhô.
- É as oito da noite?
- É, sim sinhô.
- Hoje tem marmelada?
- Tem, sim sinhô.
- Aproveita moçada!
Dez réis não é nada!
- Mas o palhaço, o que é?
- É ladrão de mulhé.
- E o palhaço, o que é?
- É ladrão de mulhé.


E o palhaço foi assim percorrendo as ruas principais de Serrana trazendo nas janelas os moradores que ficavam maravilhados de como ele se equilibrava sobre aquelas pernas de pau.

Dona Ivone esmerava-se no atendimento aos seus hóspedes e oferecia o que havia do bom e do melhor. Conversava muito com o comandante do globo da morte, o espanhol Pablo Garcia, e com a russa, Shestakaia, a mulher-bala. Pablo lhe explicava porque era o primeiro a entrar no globo e quais os comandos que dava para os seus companheiros até que todos os quatro motociclistas estivessem dentro do globo e fazendo os seus alucinantes rodopios enquanto suas motos soltavam fogo pelo escapamento. Dizia que seus movimentos seguiam as leis da Física e que o perigo existia mas era pequeno. A anfitriã ficava emocionada só de ouvir a explicação de Pablo e de Shestakaia e prometia que iria pedir ao santo de sua devoção que os protegesse. Ambos agradeciam, mas já haviam enfrentado a morte tantas vezes que, lá no fundo, riam dos temores daquela senhora.

Dona Ivone e Olinda receberam permanentes para os sete dias de exibição. Olinda ficaria assentada na arquibancada ao lado do Solito, que fez questão de ir a todos os espetáculos, enquanto para Dona Ivone estava reservada uma cadeira, perto do picadeiro e lugar privilegiado para assistir aos números e ao teatro. Para a estréia vieram moradores de Guiricema, Guidoval, Sapé de Ubá, São Geraldo e das fazendas. Muitos não conseguiram entrar porque, antes das oito horas da noite, o circo estava lotado. Naquela noite de sete de setembro parecia que a população de Serrana havia dobrado e no o único hotel os hóspedes aceitavam dormir até nos corredores. Pontualmente, às oito horas, a banda do circo tocou a marcha de entrada. Trazendo uma vistosa bengala na mão, o Mestre de Cerimônia deu inicio ao espetáculo com a saudação costumeira :

- Respeitáaaaaaaaavel púuuuuuuublico !
- O Gran Circo Irmãos Temperani saúda o progressista e ordeiro povo de Serrana.
- Nesta noite, os digníssimos espectadores assistirão números que nunca mais sairão de suas lembranças. Obrigado por virem nos prestigiar. E devo logo me retirar porque aí vem o Sorriso e o Cartola para alegria das crianças, dos jovens e dos senhores e senhoras.


Bastou que eles entrassem no picadeiro para que as crianças gritassem e gargalhassem. Sorriso mostrava uma boca toda pintada de branco que formava uma meia lua e um grande lenço vermelho, no bolso do paletó, e os sapatos com os bicos compridos. Cartola, bem vestido, trazia na cabeça uma cartola muito comprida que no seu alto mostrava uma flor. Olinda gargalhava sem que nada falassem e insistia com Solito "Olha, professor! Olha como são engraçados". Solito, mal humorado, respondeu: "- Não estou vendo graça nenhuma". Sorriso entrou no picadeiro dando um largo sorriso e abanando as mãos para a platéia. Com o rápido movimento da mão ele tirou do bolso da calça uma dentadura de borracha e a jogou sobre o Cartola que deu um pulo para trás e caiu no chão com estardalhaço.

- Que é isto Sorriso? Você ficou doido? Sai com esta dentadura pra lá (risos da platéia)
- Olha, Sorriso, apesar deste grande riso que vejo na sua boca eu tou achando você um pouco triste. Será porque acabou suas férias em Salvador ?
- Eu tô triste mesmo.
- O que ocê foi fazer na Bahia ? Será que queria ver o quê que a bahiana tem ?
- Que isto, Cartola ? Isto eu já sei há muito tempo.
- Então, Sorriso, o que ocê foi fazer na Bahia ?
- Olha, eu quis conhecer um pouco mais a comida baiana. Chegando em Salvador fui direto na Baixa do Sapateiro. Lá encontrei aquelas baianas com os seus tabuleiros e vendendo acarajé, vatapá, caruru. Não agüentei, quis experimentar tudo. E fui comendo, comendo, e quanto mais comia, mais queria comer.
- Que é isto Sorriso ? Comida baiana é muito forte e tem ainda aquele tal azeite de dendê, muita pimenta e pode até dar uma indigestão.
- Indigestão eu não tive não. Resolvi andar para fazer a digestão e fui até a Praça Cayru e tomar o Elevador Lacerda para conhecer a Cidade Alta.
- E então ? Gostou da Cidade Alta ?
- Pera aí. Comigo foram entrando outras pessoas e um casal de estranja meio metido a besta. Mal o elevador começou a subir eu fui sentindo uma vontade danada de expelir gases. Desapertei o correão. Não adiantou nada e você acredita, Cartola, que sem eu querer eu soltei aquele PUMMMMM! (sorrisos na platéia) . Os homens e as mulheres olharam uns para os outros. Eu fiquei encolhido, encostadinho na parede do elevador. Mas o estranja logo percebeu que o autor daquilo era eu e falou comigo :
- "O senhora non terrrr vergonha ? Fazer isso na frente de meu mulher ? Sem pedir licença ?
- E aí, Sorriso, o que foi que você respondeu pro estranja ?
- Eu disse pra ele: "Oh! Desculpe! Eu não sabia que era a vez dela soltar PUM" (a platéia caiu no riso e os dois palhaços esperaram que os risos cessassem para continuar a conversa.)

E assim, Sorriso e Cartola foram conversando, contando as piadas de palhaços e provocando risos e alegria na platéia.

Na arquibancada, Olinda ria que não parava mais. Solito estava sério e sério ficou até que Olinda parasse de rir. Censurou os palhaços e à sua donzela disse: - Estes palhaços são dois porcos. E uma donzela como você não deveria ficar rindo desta bobagem. "O espetáculo continuou e depois do rufar dos tambores as luzes do picadeiro se apagaram e iluminaram o globo da morte. O estrondo do motor de uma motocicleta fez toda a platéia olhar em direção ao globo da morte. Rapidamente o motociclista Pablo Garcia começou a dar voltas fazendo pequenos círculos e sua máquina roncar com um ruído ensurdecedor. Quando estava no meio do globo, dando rodopios a uma grande velocidade, uma segunda motocicleta entrou e com a mesma seqüência uma terceira e uma quarta. Os espectadores nem sequer mexiam nas arquibancadas e o pipoqueiro também parou de gritar" Pipoca. Olha a pipoca por dois réis. "Quando os Irmãos da Morte estavam rodopiando em diversas direções, e suas motos soltando fogo pelo escapamento, muitas mulheres gritavam e cobriam o rosto para não ver o espetáculo. Mas tudo correu bem, sem nenhum acidente. Após um pequeno intervalo, quando a banda de música tocou uma marcha, os trapézios foram levantados para que os "Quatro Diabos" executassem seus números. No final da apresentação o mestre de cerimônia anunciou que os trapezistas iriam executar um duplo salto mortal sem a rede de proteção. Ao rufar dos tambores os trapezistas balançaram de um lado para o outro e cada vez mais rapidamente até que um dos diabos gritou " JÁ" e do outro trapézio um dos quatro pulou no vazio dando um duplo salto mortal e agarrando a mão de um outro que veio ao seu encontro. Foi um alívio para a platéia seguido de uma marchinha alegre.

Com rapidez e elegância os "Quatro Diabos" desceram pelas cordas auxiliares e foram vivamente aplaudidos pelo público. O mestre de apresentação anunciou com grande estardalhaço, e numa mistura de espanhol e português, que Shestakaia, a bala humana, estava se preparando para o seu número. Enquanto ela não entrava no picadeiro o mestre explicou detalhadamente como seria o número e que se houvesse o mínimo erro, seja na quantidade de pólvora a ser colocada no canhão ou da parte de Shestakaia ,ela passaria além suporte a que tinha que se agarrar e sua morte seria certa. Um canhão de quatro metros de cumprimento e de boca larga foi puxado pelos marra-cachorros para um dos cantos do picadeiro. Dois holofotes iluminaram o mastro central onde as lonas se fechavam no ponto mais alto do circo. Os espectadores viram a barra onde a Mulher Bala deveria se agarrar ao ser canhoneada para o espaço. Sob a batida monótona de um tambor a Mulher Bala entrou no picadeiro vestida com uma roupa inteiriça, branca e que à distância dava a impressão de ser uma malha tecida com fios de aço.

Fez um cumprimento cerimonioso ao público. Todos os artistas que haviam se apresentado anteriormente se aglomeraram num dos cantos do picadeiro para assistirem àquele número e demonstrarem apoio à Shestakaia, pois mesmo entre eles era considerado o mais perigoso. A boca do canhão apontou para o alto, e com elegância e firmeza, a Mulher-Bala entrou no grande tubo . O próprio dono do circo veio para acender o estopim. Mais dois poderosos holofotes iluminaram a barra na qual a Mulher Bala tinha que se agarrar no seu vôo. O silêncio tomou conta do circo. Ouviu-se apenas "Shestakaia, prepare-se, agora!" A mecha foi acesa e um terrível estrondo ouviu-se em seguida. Em menos de três segundos um corpo branco foi projetado para o espaço e poderosas mãos agarraram a barra salvadora, enquanto que da boca do canhão ainda saia uma fumaça azulada. Palmas e uma marchinha alegre seguiram aquele momento de grande tensão e medo. Mais uma vez a Mulher-Bala desafiara a morte e vencera.

As luzes do circo acenderam para assinalar o intervalo que antecedia a apresentação da peça teatral. Era grande o movimento nos bastidores do palco e vários ruídos mostravam que a atividade era intensa na preparação do cenário. Finalmente, iluminado por um holofote reapareceu o mestre de cerimônia que com a eloqüência costumeira anunciou:

"Respeitaaavel Público! É com orgulho que o Circo Irmãos Temperani anuncia que pela primeira vez será apresentada, para o distinto povo de Serrana, a peça de Eurico Souto Vieira, "Amor e Preconceito", drama em três magníficos atos. Para que não sejamos responsabilizados.........(fez uma pausa na fala que deixou a platéia em suspense) avisamos que as pessoas que têm o coração fraco devem se retirar para que não venham a sentir algum mal súbito. A peça será iniciada logo após três batidas. Até lá, quem quiser, poderá se retirar antes do início de " Amor e Preconceito" Logo em seguida, carregando seu bastão, o mestre de cerimônias retirou-se com passos largos e majestosos.

Na platéia ouviu-se um burburinho. Cochichos, cigarros sendo acesos, risos nervosos. Foram dadas as três batidas tradicionais e, por mais incrível que pareça, nenhum assistente se retirou. A cortina do palco se abriu e a peça começou.

Era a história de um amor impossível, que lembrava a peça "Romeu e Julieta" de William Shakespeare. Impossível porque os dois enamorados, Rosinha Albuquerque e Carlito Sousa, eram de raças e classes sociais diferentes. Ela, moça branca, educada em colégio interno e filha dos famosos Albuquerques de Pernambuco. Carlito era apenas um contador, mulato, que chegara a Vitória de Santo Antão há poucos anos e prestava seus serviços ao pai de Rosinha e outros poderosos fazendeiros da região. Ricardo Neiva, filho de poderoso senhor de engenho, o coronel Neiva, rico e devasso,desejava conquistar a bela Albuquerque. Passaria sobre tudo e todos para atingir seu fim. Além disto era um intrigante terrível. Aproximando-se dos pais de Rosinha ele teceu uma rede de intrigas cujo alvo era Carlito, e, à medida que seus planos iam dando certos ele sorria, e cinicamente dizia, : "Como sou esperto!". Carlito foi envolvido de tal forma que acabou sendo acusado de roubar na contabilidade do velho Albuquerque e se apropriar de grande soma de dinheiro. Este falso desfalque foi causado por indução de Neiva que fornecia cana de açúcar para o engenho da família Albuquerque e não dava recibos do dinheiro que lhe era pago pelo contador. Alegava que faria um acerto no final da safra. Negou,na hora do acerto, que tivesse recebido algum dinheiro, e que o contador havia feito falsos lançamentos e se apropriado do dinheiro.. Carlito mal teve tempo de avisar a Rosinha o que estava acontecendo. Fugiu, mas antes marcaram um encontro nas ruínas de uma igreja que nos tempos coloniais fora dedicada à Nossa Senhora do Rosário, protetora dos escravos. Nesse encontro, após ternos abraços e beijos e não vendo uma saída para a concretização do amor que os possuía, sem nenhum temor, eles cometeram suicídio, cortando os seus pulsos. Um preto velho, que tinha por hábito rezar o terço no meio daquelas ruínas, encontrou os corpos dos dois infelizes amantes. Nem na morte foram unidos. Os Albuquerques sepultaram a infeliz Rosinha no jazigo da família, enquanto Carlito foi enterrado numa cova rasa. A orquestra do circo executou a Marcha Fúnebre de Chopin no final do último ato, enquanto as cortinas se fechavam.

Nas cadeiras e nas arquibancadas as mulheres e até homens, exibiam lenços e enxugavam lágrimas. Pouco a pouco as arquibancadas ficaram vazias, embora alguns retardatários permanecessem sentados. Dona Ivone foi cumprimentar os artistas, e se dizendo maravilhada com o espetáculo, pediu ao dono do circo se poderia assistir os ensaios que aconteciam às tardes. . Este privilégio lhe foi concedido. Solito não chegou a chorar, mas seus olhos ficaram marejados. Olinda chorou convulsivamente e foi preciso que seu professor alertasse : " Que é isto minha donzela ? Isto foi apenas um teatro. Ninguém morreu e ninguém sofreu. "

- Eu sei Solito! Mas por quê os dois não acabaram juntos e felizes?E tudo foi por causa daquele maldito homem, o tal de Ricardo Neiva. Na vida tem muito disto.

Solito, Olinda e Dona Ivone voltaram para casa comentando que Serrana nunca vira um espetáculo tão lindo como aquele. Nos dias seguintes o circo sempre teve lotação esgotada e um curioso fenômeno de imitação ocorreu na cidade. No Jardim, eram vistos muitos jovens repetindo a fala do vilão Ricardo Neiva e dizendo "Eu sou muito esperto!".

Os almoços que Dona Ivone oferecia aos artistas eram elogiados por todos e Olinda não perdia oportunidade de olhar para o Sorriso e sorrir. Sorriso, fora do picadeiro, era um homem com gestos distintos, bem afeiçoado e atraente. Trajava-se com alguma elegância. Olhava, com insistência, a ciganinha e chegou a perguntar a Dona Ivone se ela não daria permissão para que saísse, um dia, com Olinda, para visitar a Usina Central. Alegou que gostaria de saber como o açúcar era produzido e aproveitaria para beber um pouco de garapa que era oferecido aos visitantes no laboratório da usina.
- Infelizmente, não! A Olinda é o meu braço direito e sem ela na cozinha eu não posso fazer estes pratos que vocês tanto gostam. Quem sabe, no ano que vem, quando o circo ficar mais dias em Serrana? O palhaço compreendeu a negativa, mas durante aquela semana não deixou de lançar olhares em direção a Olinda que parecia retribuir.

No dia 13 o circo deu seu último espetáculo. Olinda disse a Solito que não iria naquela noite porque embarcaria no trem Expresso das cinco e meia da tarde para uma viagem até Ponte Nova, onde morava uma amiga e que comemorava , com um baile, o seu noivado. Ia com autorização de Dona Ivone que afirmou que não perderia o último espetáculo. Solito, embora aborrecido, resolveu ficar no seu sobrado e dormir mais cedo.

Após a última apresentação, ainda de madrugada, o circo começou a ser desarmado por um grupo de mais de quinze homens. Ao amanhecer, poderosos caminhões se movimentavam em direção a Ponte Nova onde o circo iria estrear. Às nove horas da manhã o que se via no amplo terreno da Água Limpa era a serragem que marcara o picadeiro, buracos no chão, pedaços de pirulitos, sacos de pipoca , pontas de cigarro e fósforos queimados. Um viajante que por ali passasse não poderia imaginar que durante sete dias aquele vazio acolheu milhares de pessoas que riram, choraram e tiveram medo. Os sete dias de alegria e sensação haviam acabado e o vazio retomava seu lugar. Serrana voltava à sua vida pacata. .

Na casa da Dona Ivone apenas a Filisbina movimentava-se de cá para lá na preparação do café da manhã. Indo ao quarto de Dona Ivone, ela encontrou um recado na porta que era para ser despertada somente depois do meio dia, para o almoço.

Filisbina, com o almoço preparado, foi acordar a patroa. Bateu na porta uma, duas, três vezes e em voz alta chamou : - Dona Ivone. Tá na hora do almoço. O silêncio foi a resposta. Ela ficou apreensiva e bateu mais duas vezes. Temendo que sua patroa tivesse tido algum mal súbito resolveu ir até a delegacia que ficava bem próxima e chamar o delegado. Este, procurou tranqüilizá-la e perguntou se ela não havia tomado algum calmante. Filisbina não sabia. O soldado Alonso, um preto muito forte, acompanhou Filisbina de volta à casa da patroa. Alonso, primeiro, bateu na porta e depois a esmurrou com força. Nenhuma resposta. Resolveu arrombá-la. Jogando seu ombro contra a porta a abriu de uma só vez. Filisbina e Alonso ficaram congelados ao verem que o quarto estava vazio e a cama perfeitamente arrumada. Entraram e se depararam, sobre a cômoda, com dois envelopes. Um, endereçado a Olinda, e o outro ao advogado Olegário de Sousa. O estranho fato correu na pequena Serrana de boca em boca e logo toda a cidade sabia do misterioso desaparecimento de Dona Ivone. Não estando o advogado na cidade era esperada a chegada de Olinda por volta das seis horas da tarde. Neste meio tempo foram feitas mil especulações. Suicídio? Rapto? Assassinato ? Na hora esperada Olinda, acompanhada do Solito, chegou. Uma pequena multidão de curiosos esperava, no portão, por alguma notícia. Subindo até o quarto, acompanhada também pelo delegado Afonso Bastos, do soldado Alonso e Filisbina, e sem precisar mais da ajuda do mestre, a ciganinha abriu o envelope e dele tirou uma carta que começou a ler. Seu teor era o seguinte:

Querida filha Olinda. Quando você estiver lendo esta já estarei longe de você, que tanto amo e do seu professor Solito. Pela primeira vez na minha vida conheci, verdadeiramente, o que é estar apaixonada. Concluí que antes não havia realmente conhecido o prazer do amor e o que é um homem que faz vibrar as partes mais íntimas de uma mulher. Este homem, infelizmente, não foi o finado Tiburcio, mas o Pablo Garcia que o destino trouxe até a minha porta.Nos ensaios que assistia à tarde nos conhecemos melhor e o inevitável aconteceu. Parto com meu amado para viver feliz e realizada. Minha filha, compreenda este gesto de sua mãe, e, se possível, defenda-me das línguas ferinas de mulheres que nunca conheceram o amor e que muitas vezes me confidenciaram que ter prazer era pecado e que se uniam apenas para ter filhos. Para você deixei instruções ao meu advogado para que a casa que tenho no Barreirinho, na rua Teófilo Otoni, 42, seja passada para o seu nome. Deixei também uma importância que aplicada no banco lhe permitirá ter uma renda mensal para viver. Finalmente, gostaria que aceitasse o pedido de noivado do Solito. Ele é um bom homem e tenho certeza que a fará feliz. Que Deus a abençoe e não se esqueça desta sua mãe nas suas orações a Nosso Senhor. Ivone."

Depois de ler esta carta, ouvida pelos presentes, Olinda olhou para Solito como que à espera de uma orientação. Seu olhar era uma pergunta: "E agora ?" Tomando a iniciativa, Solito convidou aos estranhos para que se retirassem. Em silêncio, ele e Olinda ficaram assentados no sofá da sala recuperando-se daquele choque.

Filisbina entrou e perguntou se os dois não iam jantar . Aceitaram comer alguma coisa. Depois do jantar, Solito disse a Olinda que esperava sua resposta sobre sua proposta de noivado. Um sim foi a resposta. Nos dias seguintes a notícia da partida de Dona Ivone correu de boca em boca e o beatério da Matriz não se cansou de condenar a loucura daquela "mulher", como agora se referiam a ela. Somente o Padre Solindo, pároco local, aproveitando a homilia da Missa do Domingo, comentou o Evangelho de Lucas, que, coincidentemente, era parte do Sermão da Montanha. Olhando profundamente para as senhoras que faziam parte das irmandades, Padre Solindo, após um silêncio significativo, e estendendo o braço direito para os fiéis, proclamou : " Não julgueis, e não sereis julgado. Não condeneis, e não sereis condenados. Perdoai, e perdoar-vos-ão. " (Lucas, cap. 6, 37) O disse-que-disse das senhoras cessou completamente. Em dezembro daquele 1938, Solito, cujo nome parecia apontar o destino de ficar só, casou-se com Olinda e foi morar na casa do Barreirinho. Solito transformou o antigo sobrado da rua do Quebra numa escola para ensinar a ler e a escrever às domésticas e também aos cortadores de cana das fazendas da Usina Rio Branco. Para aquele casal, que encontrou a felicidade numa vida simples e honesta, não interessava uma guerra sangrenta que se desenrolava na Espanha, e, no seu pequeno mundo, por intermédio do rádio, vinham as notícias que o Presidente Getúlio Vargas estava fazendo valer a nova lei dos trabalhadores e que estabelecia o turno de oito horas de trabalho. 1939 foi o ano em que nasceu a filha de Solito e Olinda, que batizaram com o nome de Ivone. De Dona Ivone e de Pablo nunca mais tiveram notícia. O circo dos Irmãos Temperani não voltou a Serrana, e a cidade continuou como que adormecida e alheia ao resto do mundo até que setembro chegasse, e, com ele, um parque de diversões ou um circo.

Sobre o Autor

Antônio Ribeiro de Almeida: Jornalista e escritor de São José do Rio Preto/SP.

Doutor em Psicologia Social, FFCLRP-USP



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