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ANNELORE E GERTRUDES
por Viegas Fernandes da Costa
*
publicado em 21/10/2007.
Há muitas maneiras de se começar uma história. Esta começa com Annelore, mas poderia começar também com Gertrudes, daria no mesmo. Não porque proclamamos o destino, céticos que somos, mas porque conhecemos o final, tão somente. Assim, esta história começa com Annelore, sem que esta o saiba, porque já derreada em sua poltrona cativa, no alto dos seus oitenta e cinco anos. Sozinha, o velho clichê, entregue à velhice e à horta, sua única ocupação além do remoer de um passado que nunca houve. O plantar de nabos e repolhos seria seu legado mais importante. Assim, não há tempo para começos, melhor creria se lhe disséssemos “Frau Annelore, és o final da história”. Ponto. Mas sabemos que não há de ser assim porque nos foi confiado este poder de narrar, e assim decretamos por definitivo “Annelore, és o princípio, porque terreno fértil.” Ponto.
XXX
Não bastava a lã em suas meias e todo o agasalho que lhe cobria o corpo. Sentia frio. Este frio úmido do Vale. Este frio de varanda ao final da tarde. O corpo suplicando o calor da cozinha, do café quente, do aconchego da televisão e da carícia da cama. Mas insistia-se na varanda, exposta aos açoites do vento, enroscada ao seu cobertor, esperando, esperando, esperando. O coração mandava esperar e ela não pedia resposta. Freitas, ah, o bom Freitas, sempre tão preocupado, já lhe convidara a entrar, alertara dos perigos de uma pneumonia, de um vento encanado, das pernas que se aleijariam. “Ainda sei o que faço, ainda tenho vontades! Vou-me quando achar que devo ir!” – e não haveria Freitas algum que lhe convencesse do contrário. E assim ficou, em seu silêncio de sempre, sentindo o frio e aquela angústia nova no peito, aquele desejo de sair correndo, arrancar os botões do vestido, expor os seios à vida e se lançar sem tento! Sim, e se lançar sem tento! E quando Gertrudes chegou, já início de noite, com seu passo vivo e seu sorriso tão bonito, Annelore sentiu vergonha deste seu desatino de correr e de arrancar botões e de expor seus seios, abaixou a cabeça e soltou um “boa noite” mau humorado. Gertrudes respondeu, feliz, cruzou a varanda e entrou. Havia a sopa, o café e a novela. Annelore se convenceu e, ainda ruborizada, sentou-se à mesa, tomou a sopa em silêncio e foi dormir.
XXX
Logo que chegou àquela casa, sentiu-se incomodada com a presença de Gertrudes. Toda aquela independência e popularidade, todas aquelas liberalidades da outra eram tão contrárias a sua moral de mulher velha, que não podia se sentir à vontade. A simples presença de Gertrudes já lhe parecia algo imoral, luxurioso. Mas desaprovava em silêncio, sem fuxicos, sem palavras, sem as picuinhas que aquela velharia caduca repetia todos os dias a sua volta. “Um bando de velhos!” – exclamava Annelore em pensamento, sozinha no seu canto, arrastando-se na vida porque a morte parecia esquecida dela. E assim, esquecida pela morte, acordava todas as manhãs para cuidar da sua horta e para sentar-se à varanda, grave e inutilmente, esperando a noite chegar. Conversa mesmo, só com o Freitas, a quem dava as hortaliças e um pouco da sua história. Bom Freitas, tão respeitoso! Claudicante, sempre chegava com aquele seu jeito manso, para escutar, e seus olhos de afeto inspiravam confiança. Foi ele quem a comunicou que iriam transferi-la da enfermaria para um quarto, onde teria mais privacidade e um banheiro quase exclusivo; e apenas ele soube do suspiro de alívio que a amiga compôs na modorra daquela tarde, quando a par da notícia. Poderia ela dormir sem ter que ouvir tantas tosses e gemidos, sem ter que aturar as sandices daqueles que, insones, encontravam-se com seus medos em meio à madrugada. “Um quarto!” – repetiu, e surpreendentemente seus lábios se abriram em um sorriso. O único sorriso que Freitas conheceu no rosto de Annelore.
XXX
Depois da sopa, deitara-se, já o dissemos, mas nos calamos quanto ao desespero do seu corpo. É verdade que Annelore encontrara o calor do seu antigo cobertor de penas, mas não é verdade que encontrara o alento do sono. Apesar do frio, seu corpo queimava, e algo dentro de si queria empurrá-la a fazer mil coisas, falar mil discursos, dançar mil valsas. Era o calor de agora e a angústia de antes que a estavam preocupando. E foi neste estado que ouviu a porta e os passos leves de Gertrudes, que chegava para dormir. Andava com cuidado, para não fazer barulho, e na parede do quarto projetava a sombra dos seus gestos. Annelore acompanhava os movimentos da sombra com a atenção e o espanto de quem assiste ao cinema pela primeira vez, e, ansiosa, viu quando a amiga soltou os cabelos e se despiu. O corpo se reclinando para o tirar da saia, os braços levantados e as mãos puxando para cima a blusa, os dedos abotoando a camisola. Depois, o vazio da parede e a quase inaudível respiração da amiga.
Dividiam o quarto, as duas, mas nunca conversavam. No começo Gertrudes até manteve alguns monólogos na esperança de incentivar o diálogo, mas em vão. O máximo que conseguiu foi arrancar algum “sim” ou algum “não” de Annelore, e depois o constrangimento do silêncio. Ainda assim, tinha pela outra um carinho especial e uma necessidade de estar próxima, de olhar-lhe nos olhos, de velar-lhe o sono. E foi assim, fingindo-se adormecida, que Gertrudes percebeu a insônia da amiga e ouviu quando esta declamou o seu nome com a eloqüência de um poema.
XXX
Por toda a vida que não vivera, aquela calma insossa, aquelas horas sempre preenchidas como a freira no convento que reza para não pecar; o trabalho de fiar compondo seu réquiem; a igreja nas manhãs de domingo dando-lhe um sentido. Oitenta e cinco anos! Oitenta e cinco anos... e agora Gertrudes, com aqueles seus olhos azuis, aquelas suas mechas brancas, a bulir na sua história, a revirar seu coração. Por quê?
Desde que chegou à casa, Annelore reparou Gertrudes, quinze anos mais moça, viúva e feliz, sempre passeando, visitando amigas, comprando flores. Reparo e a inexplicável mágoa desde então. Comentou com Freitas, quis saber quem era, o que fazia. “Gertrudes é do capeta!”- riu o velho, mas não disse mais nada. Calou-se curioso observando a amiga irritada que partia pequenos gravetos com as mãos, taciturna, sem ousar perguntar a Freitas por que havia dito aquilo. Nunca se interessara pela vida de ninguém, antes. As pessoas existiam, simplesmente, e a ela cabia fiar, tão somente. No entanto estava ali, aquela angústia no peito, aqueles gravetos na mão e os olhos de Freitas sobre si. Os olhos de Freitas e a lembrança de Gertrudes se despindo no escuro do quarto. Os braços levantados, o contorno dos seios, a camisola que caía sobre o corpo... e o perfume suave incitando-lhe o desejo. O desejo, e uma inédita e absurda necessidade de se tocar tão intimamente, que toda sua pessoa começou a lutar com o choro silencioso e com o nome da amiga que os lábios ousaram suspirar.
XXX
Gertrudes tem também a sua história, relatada nos cadernos de variedades da imprensa local, atriz de teatro que fora. Casou-se, desquitou-se, casou-se novamente, viúva. Nos anos setenta vestiu-se riponga e fumou maconha, escreveu poemas e tocou violão. Tinha quarenta anos, então. Depois, a voz perdeu o vigor e a ribalta lhe apagou as luzes. Foi dar aula, não agüentou. Vendeu casa, doou os livros e recolheu-se a este asilo, cenário deste enredo. Desde então leva esta vida solta de doar flores e dar os passos que a idade lhe permite. De dar os passos que a idade lhe permite, e a idade não proíbe o desejo e o amor. Por isso o coração vivo quando viu Annelore chegando com seu jeito cansado, com os olhos assustados de quem escolhe o lugar onde vai morrer, subindo os degraus amparada nos braços do velho Freitas, ainda galanteador. Desfiou bons-dias, puxou conversa, recebeu enfado e grunhidos. Soube então que não seria fácil este último amor, este desejo neste corpo murcho e enrugado. Insistiu. Da enfermaria, sugeriu que transferissem Annelore para o seu quarto. Estranharam todos essa esquisitice; “que importa que dormisse na enfermaria?” – argumentavam. Tropeçou nos verbos, rodeou mil razões, encabulou silêncios e convenceu a enfermeira que não havia motivos para não quererem lhe conceder a companhia da nova asilada. Que ela, Gertrudes, já se cansara de deitar sem ter a quem dar seu boa-noite e de não ter com quem comentar o sol pela manhã. Carecia de se responsabilizar por alguém, que era disto que precisava para se dar um sentido à existência e, por fim, que não fazia sentido aquela cama vazia em seu quarto.
XXX
Difícil contar este tempo, já que ao poder de narrar não nos concederam a ampulheta à mão. Dito assim, nestas poucas páginas, fica-nos impossível perceber que tudo andou a passos indecisos, sem a pressa que a situação impunha. Ah o desafogo, o nó que não se desatava! Tanto o tempo, que Gertrudes já recolhera seus tentos ao silêncio! Limitava-se a suspirar enquanto Annelore definhava nas carnes desaparecendo em si, envelhecendo como se mais ainda pudesse envelhecer. Era tanta a pele em tão pouco corpo, que já assuntavam todos o funeral. Ao cabo de alguns dias, já não se levantava mais da cama. Passava as horas deitada, de costas, o cabelo esparramado no travesseiro, os olhos buscando rever no teto do quarto as cenas de uma vida que nunca experimentou. E tudo velava Gertrudes: a febre que encharcava o corpo em suor, os lábios que se abriam para silenciar os desejos. Era tanto o velar que também ela, extenuada, entregava-se ao sono para despertar assustada em horas há muito anoitecidas, a conferir o respirar no peito de Annelore. Freitas ainda vinha titubear palavras e arriscar graças, todas as tardes, na esperança de conhecer um segundo sorriso no rosto da amiga. Em vão, Annelore enfadava-se às primeiras piadas, e dormia seu sono de angústia.
Não foram poucos os dias assim arrastados, maiores ainda as horas. A Gertrudes o tempo se estendendo por muitas vidas. A adolescência reencontrada quando as mãos magras e grandes de Annelore romperam a inércia do preconceito e procuraram as suas naquela manhã de muitos calores, e assim se deixaram ficar, como que se duas namoradas no banco do jardim, palma a palma, pele a pele. Gertrudes aceitou o convite dos dedos sem grande surpresa, naturalmente, como o rio que desce lento a planície e se mistura ao mar. A vida é inevitável, afinal! E assim, de mãos entrelaçadas, encontraram a surpresa da enfermeira que todos os dias chegava para trocar o soro. Pediu Gertrudes que lhe trouxessem uma bacia de água morna, um pano limpo e a escova para cabelos que estava sobre a cômoda do seu quarto. “Anne precisa de um banho” – justificou; e assim se fez, como todas as manhãs se fazia. Despiu a camisola da amiga, e carinhosamente foi lhe lavando o corpo nu, cada ruga, cada dobra, virgem das mãos alheias. Como teria sido? – ficamos aqui pensando, você e eu, se não houvesse tanto medo, tanto pecado e tanta tradição na história de Annelore. Pudesse agora voltar, teria já no primeiro parágrafo inventado um sutil olhar de desejo, uma piscadela de folhetim vulgar, mas chega o momento em que não mais nos pertencem estas almas, nossos dedos plantam as palavras que os personagens impõem, e somos tomados de grande surpresa quando nos deparamos com uma Annelore de forças exauridas clamando em si o corpo de Gertrudes. Estão tão próximas agora! Os corpos, os lábios... A necessidade deste toque de carinho que há tanto tempo acalenta e nega. A vida é inevitável, afinal, há de se repetir. E neste imperativo da vida, neste último gesto de mulher, Annelore sussurra por Gertrudes. Não há pecado neste sussurro, apenas prece....
... que Gertrudes atende.
Sobre o Autor
Viegas Fernandes da Costa: Viegas Fernandes da Costa nasceu no município de Blumenau em 21 de fevereiro de 1977. Formado em História e professor de Humanidades no Colégio Metropolitano de Indaial, começou a escrever muito cedo. Poeta, contista, cronista e ensaísta, possui inúmeros trabalhos publicados na imprensa nacional e em antologias, detendo inclusive alguns prêmios literários. Viegas mantém também a coluna “Crônica da Semana”, distribuída para milhares de endereços eletrônicos em mais de uma dezena de países.Site oficial = http://www.viegasdacosta.hpg.ig.com.br/
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