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De velhas e antigas caixas

por T.M. Castro *
publicado em 06/08/2007.

O velho desembargador não provocou comentários hilariantes nem sequer admiração por parte de seus familiares ou de seus amigos quando, num sábado de manhã, pôs-se de terno e gravata e se acompanhou do motorista para uma revisão no seu carro, do ano, ponta de linha. Em público só se apresentava assim, passeio completo. Não tinha que ser necessariamente um tropical inglês nem uma gabardina italiana nem uma casimira francesa. Panos, simples, nacionais que fossem, mas gravata e terno. Certa noite, a mulher, dona Lili, acometeu-se com uma de suas enxaquecas, dia de semana, onze horas da noite, o motorista, jálargado o posto e ido embora. O desembargador enfatiotou-se, tomou do veículo e foi à farmácia, duas quadras de seu moderníssimo apartamento em área nobre da cidade.

O fato de assim proceder não era simples hábito herdado de quando em atividade no tribunal. Não, isso vinha de jovem; primava o desembargador por uma linguagem visual impecável. Alto, magro, bigodes e cabelos sempre aparados, exibia um pescoço longo como uma serpente. O pescoço clamava por gravatas e assim ele obedecia. Tampouco o traje implicava ser ele necessariamente um homem antiquado, infenso às comodidades modernas. Logo que o computador deu o ar de sua graça, ainda antes de sua inimaginável ascensão, o desembargador logo se informatizou. Por conta própria instalou seu personal no gabianete, trouxe técnicos para ensiná-lo e aos auxiliares o manuseio da máquina, e, de repente, era o homem mais atualizado do tribunal, legislação e jurisprudência à mão e em dia.

Gentilíssimo, um lorde, não comparecia a um jantar em casa de amigos sem prover dona Lili de um buquê de flores para a anfitriã. Sempre magistrado, não seria a aposentadoria que o liberaria do ônus de ser referência de compostura e lhaneza. Jamais comparecera aguichet de loja lotérica para arriscar um pouco. Ousasse um vendedor de loteria incitá-lo a fazer uma fezinha, ele por certo, emitiria um estancador obrigado, curto, certeiro embora lhano. Freqüentava a missa das dez regularmente, mas não era um carola, um velho piegas. Mineiro de boa cepa, ir à missa parecia ser mais um hábito condizente a sua origem, à boa e nobre aristocracia rural mineira. Ir à missa era homenagear a mãe, as tias, o pai, todos falecidos, e dar continuidade de exemplo ao monte de empregados da fazenda, já desaparecida, em outras mãos, juntamente com os empregados; mas, nem por isso. Ir àmissa fazia parte do grande acervo de condutas ditadas pelo memorial, inarredáveis, vivas, brasas jamais viram cinzas nas famílias que se propõem continuar.

Seus colegas, também aposentados, de igual modo assumiam comportamento assim discreto, mas já se permitiam trajes mais leves e certas ocasiões bem que indicavam uma calça jeans comportada, camisas de mangas longas, brancas. E a missa, bem bastavam as sufragantes de sétimo dia, que já se tornavam bem freqüentes. Como os homens de sua provecta idade, o desembargador não tinha nas incursões públicas, mercados, oficinas, igrejas, jantares, seu favorito e seu feliz momento, seu respiradouro de uma tediosa vida monástica de velho aposentado. Nada disso. Amava seu dia a dia repleto de coisas modernas: grande tela de televisão moderníssima, vero teatro privado, para assistir filmes, lançamentos e os velhos clássicos; aparelho de som apuradíssimo e discos que importava punham-no em enlevo. A última regência da Paixão Segundo Mateus, de Bach, descobriu em sítios eletrônicos e rapidamentte já dispunha da versão.

Era um homem de seu tempo e bendizia as facilidades modernas. Diariamente, às 17 horas, após alguma atividade física em ambiente do condomínio, sentava-se frente ao computador e navegava. Era assinante da New York Review of Books, do Le Monde, revistas italianas, afora periódicos nacionais. Por volta das 20 horas tomava um uísque diluído em dois dedos de água soda. Jantava, pitava um cigarro de excelente marca, e voltava para ver sua correspondência eletrônica. Dona Lili então o acompanhava para saber de notícias dos amigos e filhos ausentes.

Certa noite, uma das mensagens informou-lhes a morte de Dona Edite, pessoa de conhecimento do casal desde a juventude, de escolas de Belo Horizonte. Sem muito alarido, diria mesmo, sem nenhuma entonação emotiva, disse ele que o e-mail informava a morte da amiga. Dona Lili pôs-se de pé. Que mais diziam? De que morrera a amiga? Só disseram isso, Lili, Edite morreu. Não, não identifico o remetente, um ponto com ponto br qualquer no meio de um monte de destinatários. Um fw. Solicitou outro uísque, desligou a máquina e passou a ouvir uma peça sacra, gênero de sua preferência. O Réquiem, de Verdi, me disseram.

No dia seguinte, muito cedo, foi com Dona Lili a uma loja de flores que dispunha de atendimento em vários estados. Encomendaram uma coroa de flores para ser entregue de imediato na capela do cemitério em Belo Horizonte, onde se dava o velório, Saudades dos amigos, e seus nomes, mandou gravar na faixa. Roxa. E só. A providência tomada ali, na floricultura, in loco, aliada ao prestativo telefone, acudiria a emergência e as flores chegariam a tempo.

Dona Lili quis rememorar um pouco a antiga convivência com a querida defunta. O desembargador ouvia calado, como se estivesse repleto, abafado, nada dizia. Dias depois chegou-lhes uma carta do viúvo. Agradecia as flores e enviava o santinho da missa. A carta, via-se, fora escrita à mão, em nobre papel de linho. Trazia ao topo da página, em fino itálico, os nomes de Edite e Eustáquio. Recendia do papel um suave odor, mui suave, de alfazema, de coisa guardada em caixa assim perfumada, própria para papéis, a eles destinada.

Antes de romperem o lacre do envelope, limparam bem as mãos. Lili segurava o papel e ele, por trás, acompanhava com os olhos a leitura que ela fazia. Os leitores, sem muito esforço, poderiam ver mesmo pingos de lágrimas aqui e ali na carta. Sentiriam a palma da mão do remetente, velho amigo, talvez trêmula e relutante em fazer a pranteada participação; poderiam mesmo ouvir o som produzido pelo deslizar do bico da pena da Parker 51 sobre o papel. Leram a missiva várias vezes. Abraçaram-se e choraram muito, muito, e se puseram de luto por vários dias. A carta foi arquivada em elegante e antiga caixa, própria para cartas. Das que não existem nem podem existir mais.


Sobre o Autor

T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.

Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br

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