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A Solidão segundo Ronaldo Cagiano

por Geraldo Lima *
publicado em 11/03/2007.

O conto, embora esbarre ainda na resistência de alguns editores ( não teria o mesmo poder de vendagem do romance ou da novela, seria assim como uma espécie de primo pobre da ficção), ocupou definitivamente seu espaço no universo literário brasileiro. Depois do "boom" da década de 70, pensou-se que essa espécie narrativa estivesse esgotada, que não poderia nos oferecer mais nada em termos de linguagem e conteúdo, mas a produção recente tem demonstrado exatamente o contrário. É o caso do recém-lançado "Dicionário de pequenas solidões", de Ronaldo Cagiano, pela também recém-criada editora Língua Geral.

O volume, que reúne catorze contos publicados anteriormente nos livros Dezembro indigesto (FCDF) e Concerto para arranha-céus (LGE Editora), traz a marca inconfundível desse prosador: o tom amargo da voz do narrador, seja em primeira ou em terceira pessoa. A visão que o autor nos oferece da realidade é sempre dilacerante, despida de romantismo. No universo literário de Ronaldo Cagiano não há espaço para frivolidades, amenidades, passatempos. Tudo ali funciona como um mergulho radical na existência amarga dos personagens. O discurso é denso, cortante, quase sempre um jorro deixando aflorar a dor e a solidão que devoram a alma de prostitutas, funcionários esmagados pela rotina do ambiente de trabalho, filhos ressentidos, tipos paranóicos, suicidas, ou seja, todos aqueles que não encontram mais sentido na engrenagem da sociedade, na sua máquina de produzir preconceitos e alienação. Sobre eles, o autor lança um olhar cúmplice e generoso. E a linguagem, de extrema beleza poética, amplia ainda mais esse universo de sentimentos à flor da pele.

O conto que abre a antologia nos choca pela dureza da sua temática: o abuso sexual de uma criança. O assunto é recorrente no noticiário, mas, tratado do ponto de vista ficcional, ganha nova dimensão. É claro que, nas mãos de um escritor menos habilidoso, a história poderia resvalar para a pieguice, a denúncia fácil, desprezando todo o conteúdo psicológico e trágico que ela contém. Mas, nas mãos de Cagiano, transforma-se num texto denso, tocante, cuja narrativa em primeira pessoa deixa vazar todo o ressentimento e nojo que povoam a memória da personagem vítima do abuso. ",eu já tinha vinte e tantos anos e a única imagem que me povoava a mente com pavor e abjeção era aquele homúnculo, coxo, reles, vil, desaparecendo no quintal de casa como se nada tivesse acontecido..." É para dentro do universo psicológico dessa personagem, cuja vida foi arruinada pela violência, que Cagiano nos arrasta como numa enchente: a narrativa, delirante, - um jorro contido apenas por vírgulas - dá-nos a real dimensão do estado de choque e rancor em que se encontra a personagem.

Pode-se dizer que grande parte dos contos dessa antologia tem como fonte a memória - memória nem sempre bem digerida pelos personagens: "...nesse fluxo hemorrágico de lembranças dolorosas"; "Infecta nostalgia"; "Coisa estranha, a memória, esse aluvião: às vezes é pântano, às vezes um cupim de aço tirano revirando o íntimo". O rememorar, nesse caso, é sempre doloroso, um acerto de contas com o passado. "Lembra-se da última vez que o pai o abraçou na vida: quando o irmão caçula foi enterrado naquela mesma sepultura, depois de ter sido esmagado pelo caminhão de areia do Albertino... (...) Foi ele quem mandou Serginho ir brincar nos fundos, para não incomodar a mãe..."

Mais problemático que o rememorar é o ter que retornar ao lugar de origem. (E é do universo da sua cidade natal, Cataguases, que Cagiano recolhe parte dos seus personagens.) Então, alguns desses personagens, tendo que retornar a esse ambiente interiorano, deixam transparecer o quanto estão distantes, cindidos, e o seu olhar será sempre crítico, impiedoso, impossibilitando o reencontro efetivo e afetivo com o passado. É o caso do personagem do conto "Horizonte de espantos": "Vim para ver Cassilda pela última vez e voltar às origens, mas longe daqui, desta cidade espremida entre o rio e a montanha, entre a mediocridade e a alienação, que me matou e me levou pra bem distante. Estou sozinho nesta cidade de vivos-mortos..." Ruas, praças, casas e rios de Santa Rita ( ou Cataguases?) compõem o cenário de alguns contos dessa antologia, como é caso de "Encontros", "Pavlov", "Dies irae", "No último natal do milêncio" etc. - o rio Pomba, recentemente poluído pela lama tóxica de uma indústria, também está lá. O espaço urbano do Distrito Federal, - Brasília e cidades satélites - aparece também com bastante freqüência. Cagiano conhece muito bem esse cenário, pois tem transitado por ele durante boa parte da sua vida, daí a precisão com que situa cada cena, com que movimenta os personagens. Numa viagem de metrô, do Plano Piloto até Ceilândia, temos uma visão estilhaçada desse espaço, onde personagens do povo entram e saem com suas vidas marcadas por dificuldades cotidianas e lampejos de esperança. Neste conto, talvez o mais ousado do ponto de vista da composição, o autor usa o recurso da colagem (notícias de jornais, citações da Bíblia, trechos de diários etc.) para nos dar uma visão bem plural da realidade no interior do metrô.

Esse universo perturbador (esta é a função da boa literatura: arrancar-nos do comodismo, da quietude estéril), sem espaço para frivolidades e maneirismos, é o que Cagiano oferece ao leitor, que emergirá, sem dúvida alguma, mais humanizado da leitura desse belo e trágico "dicionário de pequenas solidões".

Sobre o Autor

Geraldo Lima: Geraldo Lima nasceu em Planaltina (GO) em 1959 e vive em Sobradinho (DF). É professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Já foi premiado em vários concursos literários. Publicou o livro de contos A noite dos vagalumes (Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF, 1997) e o livro de literatura infantil Nuvem muda a todo instante (LGE Editora, 2004). Participou, em 2004, da Antologia do Conto Brasiliense (Projecto Editorial, org. por Ronaldo Cagiano). É autor das peças de teatro Error (encenada pela Oficina do Teatro de Periferia,1987) e Trinta gatos e um cão envenenado (inédita).

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