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A grandeza de David Lean em biografia não publicada no Brasil
por Chico Lopes
*
publicado em 28/01/2007.
É essencial para quem queira saber mais sobre Lean. Na capa, ninguém menos que o ator Alec Guiness, presente na maior parte de seus filmes famosos, diz: "I cannot imagine it being done better". E esta mesma capa é um dos grandes momentos do cinema de Lean, não em filme, mas nos bastidores - na filmagem da tormenta marítima de "A filha de Ryan", ele e equipe em luta contra os elementos (Lean é captado quase como um herói helênico) com uma câmera de 70mm.
Aliás, esse é um pouco o tom que percorrerá o livro - o de homenagem a um homem com perfil heróico, de uma estirpe titânica. Para falar a verdade, isso é também responsável por certo ranço de fã que Brownlow poderia ter evitado. Quando um homem nos é descrito nos termos com que Lean é ali tratado, é natural que o encaremos com algum ceticismo e antipatia tendentes a se justificar. Uma vinheta (a que não falta certo humor) mostra uma caricatura de Lean meio como na efígie de um imperador romano que padecesse com megalomania. É um Lean arrogante e imperial, o que ali se desenha. De modo que Brownlow não estava assim tão alheio a esse aspecto.
Na corda bamba do gigantismo
Lean, cujo talento foi sempre difícil de negar, foi sempre também - e era inevitável que o fosse - uma figura polêmica entre críticos e estudiosos de Cinema. Seus filmes começam por ser estritamente ingleses, ele faz duas grandes adaptações de livros de Charles Dickens - "Grandes esperanças" e "Oliver Twist" - e um sucesso internacional como "Desencanto", sem sair da Inglaterra. Fez também algumas incursões pela comédia, e no Brasil pode-se encontrar em DVD "Uma mulher do outro mundo" ("Blithe spirit"), adaptação de uma peça teatral de Noel Coward. Recomendo este filme aos admiradores de Lean no Brasil só para verificar um fato: ele era ruim de humor, e ainda mais do humor de Coward, que parece, hoje em dia, terrivelmente afetado. O filme é até bem feito, mas é meio constrangedor, com um Rex Harrison bem chato.
Creio que a objeção feita a Lean que mais me afetou partiu do crítico francês François Truffaut, que tinha uma grande ojeriza ao cinema tipicamente inglês de feitio acadêmico de Lean, ojeriza manifestada tanto no livro em que entrevista Alfred Hitchcock quanto em "Os filmes de minha vida". Truffaut desprezava o gigantismo das superproduções em que Lean se envolveu a partir de "A ponte do rio Kwai", que lhe deu Oscars em penca e reconhecimento do público e da crítica do mundo inteiro.
É esse o grande divisor de águas na carreira de Lean, não só para Truffaut, mas para a crítica cinematográfica toda. Muitos teriam preferido que Lean ficasse restrito a filmes menores, mais enxutos, mais baratos, na Inglaterra. Mas, com o dinheiro de um produtor norte-americano com mania de grandeza bem óbvia, Sam Spiegel, ele entrou como diretor em "...Kwai", fez rios de dinheiro, e, a partir daí, o que se vê é o nascimento do Lean que os fãs de cinema do mundo inteiro cultuaram, mas que, para a crítica, perdeu alguma coisa. Teria mesmo perdido ou ampliado o seu talento?
O livro de Brownlow, tirando a sua pátina de reverência, é bem revelador no tocante aos bastidores dessas grandes produções que se eternizaram na memória do cinéfilo. Vi em DVD uma cópia restaurada de "Lawrence da Arábia" nos dias em que lia o livro, e foi ótimo pegar três capítulos dessa biografia para saber tudo que rolou naquelas filmagens hoje em dia consideradas heróicas. E heróicas foram, com um Lean apaixonado pelo deserto da Jordânia, onde conseguiu filmar cenas que é impossível esquecer (especialmente se foram vistas em tela de cinema, no esplendor total do 70mm) e onde travou brigas fenomenais com Spiegel, que queria, como todo produtor, reduzir as despesas de orçamento e apressar o calendário. Lean, perfeccionista, deslumbrado pelas visões que ia tendo, "enrolava", Spiegel o infernizava e, como o dinheiro quase sempre vence nesses casos, um meio-termo conciliador foi que Lean acabou o filme na Espanha e no Marrocos, deixando a sua amada Jordânia. Mas, fez o que fez.
"Lawrence da Arábia" saiu em 1962, ganhou outra enxurrada de Oscars, mas o filme, a despeito de toda a sua beleza, dá um pouco de razão a Truffaut: é dilatado, a personalidade de Lawrence é ambígua demais para sustentar um perfil de grande aventureiro, e o gigantismo, que estava mais na cabeça de Spiegel que de Lean, vamos dizer, estica e afrouxa a produção lá pela terceira parte, a "mania de grandeza" parece prevalecer sobre o intimismo, e a música de Jarre de bonita passa a meio paquidérmica.
Era um defeito da época, e basta lembrar alguns dos terríveis épicos bíblicos de Hollywood, como "Ben-Hur", elefantinos, intermináveis, com todas as emoções, nada sutis, enfatizadas por música orquestral pesada, de "arrepiar" e esmagar espectadores.
Tanto isso é verdade que o filme seguinte de Lean, "Doutor Jivago", com dinheiro da Metro e do produtor Carlo Ponti, é muito, muito inferior, se bem que continue tendo belezas. A respeito dele, lembrei uma frase que me ficou na cabeça, quando Omar Shariff, já um veterano, dava uma entrevista ao entrevistador Roberto D´Ávila, do "Conexão Internacional", e disse do filme: "Tinha violinos demais..." Referia-se ao terrível "Tema de Lara", de Maurice Jarre, que tanto sucesso fez, como trilha sonora. Isso sintetiza um pouco o dilema essencial do cinema de Lean, premido por uma indústria pesada. E, a despeito disso, um artista.
Lean foi tomado um pouco pela megalomania de "grande diretor" para filmes muito grandes depois de "Lawrence da Arábia". Além de fazer esse dúbio "Jivago", foi tentar ajudar a manter em pé um épico religioso que nasceu morto, nos anos 60, "A maior história de todos os tempos", da triste decadência do diretor George Stevens. Ajudou-o num dos episódios. O filme todo é o menos memorável de Stevens e, pior, atestou a sua inexorável decadência.
Na contramão dos anos 60
Na verdade, Lean afundou-se para a crítica foi mesmo nos anos 60. O cinema que ele fazia, contestado por gente da Nouvelle Vague francesa, pela década da rebeldia juvenil, das seríssimas mudanças de comportamento, não tinha nada a ver com produções pequenas, incômodas, contestatórias e baratas, feito por cineastas sem formação acadêmica de qualquer espécie que queriam simplesmente expressar idéias sem tanto cuidado formal. No livro de Brownlow, ficamos sabendo que ele simplesmente não queria sair de casa, que o cinema que se fazia, à la Godard ou outro, não combinava mesmo com o seu espírito.
O fim de David, para a crítica, na verdade, veio com outro filme da Metro, "A filha de Ryan", de 1970, que lhe rendeu um encontro esmagador com novos críticos de cinema em New York, numa sala em que, sozinho, enfrentou "monstros" como Pauline Kael e outros. Fizeram picadinho do gigante. Mal conseguiu reagir. Ficou, depois disso, 14 anos sem filmar. Só voltou em 1984, com "Passagem para a Índia", seu canto de cisne.
"Passagem para a Índia" o reabilitou para a crítica, mas ele já não tinha o mesmo entusiasmo. Morreu em 1991, com o projeto de adaptar o romance "Nostromo", de Joseph Conrad, para a tela.
De uma certa flor numa noite na Índia
É possível concordar com parte do que dizia Truffaut, com ataques talentosos e justificados que partiam de outros críticos, mas é impossível não ver em Lean o símbolo de um certo cinema, da maior qualidade, que hoje em dia já não parece ser feito. A menos que se considere aquela overdose de sonolência pretensiosa que é "O Senhor dos Anéis" como um épico. Os épicos de hoje em dia não se centralizam no Homem, mas nos efeitos especiais, e por isso são tão grandes quanto uma imensa loja de vídeo-games e gadgets eletrônicos pode ser. Haverá algo menos grandioso que aquele "Pearl Harbor" que se fez nos últimos anos ou mais fake e requentado que "Gladiador"?
No centro do cinema de Lean, há o velho humanismo: Lawrence, no deserto, é pelo menos tão grande (e por isso ambíguo) quanto as dunas e o resto. No meloso "Doutor Jivago", é a vida de um homem que se encontra em questão, e assim em "A filha de Ryan", belo estudo sobre o casamento que "Madame Bovary" inspirou a Lean. Em "A ponte do rio Kwai", é a loucura militarista de dois homens o que se discute.
Faz muito tempo que o cinema de Lean passou, e as contestações que se fazia a ele não parecem mais fazer sentido. Dois minutos de intimismo em "Passagem para a Índia", e se tem tudo. Prestar atenção à flor que, na noite, com uma janela cuja cortina é agitada pelo vento, se abre e dá seu perfume inebriador (um pouco mais, e a gente chegaria a senti-lo) de Oriente àquela reprimida inglesa, a Srta. Quested. Ela o respira, e respiramos com ela. Judy Davis, que interpreta a Srta. Quested, começou o filme tendo Lean em baixa conta e seguiu as filmagens hostil, até nesse momento, quando ele pediu que ela aspirasse ao perfume. Aí entendeu que se tratava de um grande diretor. E, na verdade, fez, com essa inglesa reprimida, o maior papel de sua carreira.
Esse perfume, esse momento mágico, é Cinema de primeiríssima, e já não há mais Leans. Nem Truffauts nem Kaels. Ao falar de grande Cinema, infelizmente, parecemos todos estar falando exclusivamente do passado.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
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