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O encanto do Deserto esmagador: revendo um Berlolucci polêmico
por Chico Lopes
*
publicado em 17/10/2006.
Depois, quando o filme era mencionado entre apreciadores leigos de cinema ou cinéfilos, sempre se ouvia opiniões do tipo “é uma chatice”, “é uma monotonia danada”, ou “é um fracasso de Bertolucci”, mas também não era impossível achar quem admirasse o filme, e, por vezes, com um entusiasmo que parecia um pouco equivocado também, um entusiasmo a que não faltavam umas boas pitadas de esnobismo.
Para tirar essas dúvidas, recentemente comprei uma versão do filme em bancas, a um preço promocional satisfatório. É o tipo do filme que acaba mesmo em cestos promocionais, notado e comprado por pouquíssima gente, numa era de consumismo cultural.
Quando o filme saiu nos Estados Unidos, o diretor Bernardo Bertolucci estava no apogeu, tendo recebido nove Oscar por “O último imperador”, e na certa o cinema industrial norte-americano esperava muito dele. Como esperou dos nossos Hector Babenco e Walter Salles Jr. , que não deram a eles exatamente o que esperavam. Nesse particular, só mesmo o mais recente Fernando Meirelles parece ir dando-se bem.
O Bertolucci que filmou “O céu que nos protege” adaptava o livro de um escritor, Paul Bowles, não necessariamente popular entre os norte-americanos. Tipo difícil de classificar, Bowles foi mais visto como compositor de vanguarda durante um bom tempo, e dificilmente seus livros, apreciados por uma certa faixa da crítica mais informada, teriam encantos assegurados para espectadores de cinema na cartilha de Hollywood. Viveu com a mulher, Jane, uma vida conturbada e nômade, interessado pela África e por lugares do mundo que a América careta jamais poderia aprovar, e o casal tinha esses traços que, se nos parecem menos imprevisíveis hoje em dia – era bissexual, rico, niilista e chique –, não tinha mesmo como ser aceito por aquele puritanismo todo.
A crítica se dividiu. Roger Ebert, crítico respeitável e muito lido, gostou. Vincent Canby, do New York Times, achou-o “o mais sedutor e o mais hipnótico filmes de Bertolucci”. Outros, como Pauline Kael, acharam-no tedioso.
Em geral, o comum foi o espectador anônimo achar que o filme era mesmo uma chatice, tratando de “dois inúteis perdidos no deserto”. Posso compreender essa aversão. Kit e Port Moresby são um pouco o símbolo de uma América tão opulenta que pode ter, entre seus filhos desgarrados, gente rebelde e chique a ponto de trocar todo o conforto e civilidade pelo deserto da África do Norte, com suas misérias, doenças, seu primitivismo intratável. É natural que isso pareça excessivo, esse ócio de “frescos” bem alimentados, ricos, que, a qualquer momento, podem ser resgatados de suas aventuras no Terceiro ou Quarto Mundo por alguma providencial embaixada norte-americana.
Grandeza incompreendida
Pois, na minha revisão, topei com um filme de que, decididamente, mal me lembrava. Tem uma grandeza incompreendida, essa produção, e é uma grandeza tão óbvia que a incompreensão me deixou um tanto perplexo. Primeiro: dois atores ótimos, escolhidos com perícia para os papéis principais, John Malcovich e Debra Winger. Difícil imaginar atores melhores, tanto que Campbell Scott, no papel do inseparável amigo Tunner, deixa a sua fraqueza de ator completamente exposta, por contraste. A fotografia de Vittorio Storaro (fotógrafo de alguns filmes de Visconti e de “Apocalypse Now”, de Coppola) é magnífica. Percebam como, jogado numa cama do quarto daquele hotel, languidamente, Malcovitch está aninhado sob uma luz alaranjada-ígnea que vem da rua e torna o seu canto um cubículo infernal, não menos. Ele se aninha no Inferno, naquele calor que sentimos que deve dominar Tanger, a cidade onde estão. Essas luzes e sombras de Storaro dão ao filme uma organicidade muito forte, muito fiel ao mundo literário de Bowles. A fotografia, decididamente, é um dos personagens desse filme.
Claro que isso não fica muito claro para o público em geral, mas o casal Kit e Port, inspirado em Jane e Paul Bowles, carrega aquele mal-explicado Tunner como um elemento de “ménage à trois”, por suas predileções bissexuais. Bertolucci não enfatiza, mas não escamoteia isso, e Kit carrega um livro de Djuna Barnes (ver na abertura) em sua mala, o “Nightwood”, o que revela sua abertura intelectual. Autora de peças teatrais, mulher liberada, novaiorquina, com o marido compositor de vanguarda, a verdade está lá, e Bertolucci não cai na vulgaridade de escancará-la. Mas, é claro que isso restringe bastante o filme, para as platéias. Bissexualidade não é coisa para todo mundo.
“O céu que nos protege” vai nos presenteando com sutileza após sutileza, e precisa de espectadores sofisticados, ou se estiola (o que as bilheterias escassas confirmaram). Ele desvenda o colonialismo cultural e a impossibilidade de comunicação entre mundos tão diferentes de um modo que não satisfaz aos apetites dos espectadores meramente “voyeurs” ou turísticos. Veja o outro “casal”, paralelo à trajetória de Kit e Port, que se desenha: os Lyles, com uma mãe feroz, autora de livros de viagem, e seu filho gordo, desmunhecado, pateticamente dependente, cleptomaníaco e Édipo esmagado. São ingleses detestáveis, e a gente nem sabe o que fazem naquele fim-de-mundo, que o tempo todo criticam, com amargo sado-masoquismo – o filho até se oferecerá, com aquele corpo grotesco, para Port, para, rejeitado, ao menos roubar-lhe o passaporte...A mãe é uma megera completa. E atitude deles, de desprezo total aos nativos, é só uma explicação mais completa, definida e antipática do colonialismo mais complacente e escapista que orienta os “viajantes” norte-americanos Kit e Port. Bertolucci está lúcido o tempo todo, entendendo muito bem a questão colonialista que ali se ergue.
O deserto, no cinema americano, no imaginário popular que se criou a partir daí, não é de modo algum o Deserto dos ascetas, o deserto implacável, intolerável, esmagador, que sabemos ser, em realidade. Está mais para aquela incrível fantasia kitsch de “O jardim de Allah”, velho filme de Marlene Dietrich em que ela faz uma ricaça em busca de conhecimento (ou passarela de moda?), que desfila roupa após roupa sobre os camelos, sem que nenhuma brisa ou ventinho que seja lhe desfigure os cílios e a maquilagem imaculada. Mas, indo mesmo para uma produção mais sofisticada e recente como “O paciente inglês”, o que se tem é o glamour daquelas tomadas aéreas em que as dunas são extremamente sedutoras, de uma beleza de tirar o fôlego. Essa beleza, naturalmente, está lá, e Vittorio Storaro precisa dela, mas a sensação para o espectador, é bem menos confortável. Mesmo com Kit tendo perdido o marido e se entregado (no que parece uma fantasia romântica feminina com o “sheik das Arábias” que vai de Rodolfo Valentino ao Omar Shariff de “Lawrence da Arábia”) ao chefe de uma caravana de beduínos, o terror da incomunicabilidade está lá. Não há consolos escapistas – aquilo é esmagador, e está bem clara a razão de a primeira cena dessa produção ser um homem de ponta-cabeça. Apavorada com a morte do marido (e já se viu cena mais atroz que aquela em que Port uiva na mão dos médicos, esperneando feito animal, pelo tifo que o consome?), é muito lógico que Kit sinta que não lhe resta mais nada senão entregar-se àquela caravana, nada entender, nada falar, apenas cair num torpor absoluto. É inesquecível a cena em que, perdida naquele forte onde parece haver uma única pessoa falando francês, a areia do deserto constantemente entrando pelas frestas, tenta ajudar o marido em sua febre delirante, vagueia como uma criatura absolutamente perdida, apalpa o Nada em todas as direções: de um lado, o marido e a Morte, de outro, o Desconhecido completo...
O público dificilmente mergulha nessas viagens de niilismo, e as traduções cinematográficas do desespero e do “choque de culturas” encontram sempre escassa receptividade. “O céu que nos protege”, poético e belo, é acusado de monotonia, quando o seu assunto é, pasme-se, precisamente o que essa monotonia incompreendida abriga. Naturalmente, um filme como “O paciente inglês” será sempre mais palatável. Ou pode-se ficar com aquela África à medida do deslumbramento turístico que “Entre dois amores”, de Sidney Pollack, com Meryl Streep, oferecia. As escolhas “normais” são essas, geralmente. Diretores mais artísticos e comprometidos, por sua liberdade e sua coragem existencial, são sempre punidos pelo público vingativo com o insucesso.
Rever “O céu que nos protege” nos dá algumas lições importantes, por causa disso. Paul Bowles foi um grande escritor (ele aparece, em carne e osso, ao início e ao final do filme, no café de Tanger) e hoje em dia é menos lido. Mas seus contos soberbos me acompanharam, em alguns anos, e senti vontade de relê-los, revendo o filme. E os que conhecerem “O céu que nos protege” só agora sentirão vontade natural de saber quem é ele, desde que tocados pelo filme. Que, realmente, é uma produção para “gatos pingados”.
No entanto, sabemos que na cretinização geral a que estamos submetidos, pela indústria cultural, gatos pingados são os únicos que ainda se arriscam a ter pedigree.
Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.Mais Chico Lopes, clique aqui
Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
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Email: franlopes54@terra.com.br
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