A evolução teve que caminhar alguns bilhões de anos até produzir os sentidos corporais. Na verdade, é o universo que através destes sentidos começou a se olhar, a se sentir, a se tocar e a se ouvir a si mesmo. Mas quando surgiu o ser humano, esses sentidos ficaram conscientes e por isso espirituais. Por eles o universo se olha, canta e se extasia.
Tanto para os sentidos corporais quanto para os espirituais pode ocorrer aquilo que parece impossível. Tais coisas surgem daquele fundo abissal e misterioso de energia, do qual tudo procede e para o qual tudo retorna. Chamam-no de vácuo quântico ou, numa expressão mais feliz, de
"Fonte alimentadora de todo o ser", outro nome para Deus.
Porque é assim, o impossível acontece, como comentou acertadamente, numa recente crônica, Carlos Heitor Cony, ou acontece o milagre como preferem dizer os cristãos. Vou contar um milagre comovedor.
Em 2003 visitei pela primeira vez a ilha de
Fernando de Noronha, prova de que um pouco do paraiso terrenal ainda perdura. A população, em grande parte, cumpre o preceito divino dado a nossos pais originários, o de serem jardineiros e cuidadores daquela herança sagrada.
Encontrei Ana, uma professora primária, esposa de um pescador, que vendia bolinhos logo abaixo da igreja, para completar a renda familiar. Conversamos de como é importante cuidar das belezas de Noronha, educar os jovens para essa missão e obrigar os turistas a zelarem pelo lixo.
Estabeleceu-se, de imediato, uma relação de grande cordialidade. Ela tinha uma voz suave como a brisa que vinha do mar e seu olhar era terno como as areias finas da praia lá embaixo. Eu me animei e falei de como surgiram a Terra, os mares e as ilhas como Noronha. E ela escutava com brilho nos olhos como quem recebia uma mensagem esperada.
De repente disse:
"Nós somos pequenos e humildes. Vocês são doutores e sabem tantas coisas que nós podemos aprender e nos encher de admiração". Minha companheira Márcia, educadora popular, retrucou, dizendo:
"Ana, você também sabe coisas que nos fazem aprender e encher de encantamento". Foi então que ela se abriu e disse:
"posso contar um milagre"? "Lógico, nós acreditamos em miliagres".
E então contou: "Foi o que Deus nos concedeu na semana santa de anos atrás. Em casa não tínhamos peixe nem água. O navio que devia trazer mantimentos não veio. Meu marido pescador há dias não conseguia pescar nada. Que iríamos comer na semana santa? Tínhamos só um pouquinho de espagueti. Foi então que eu e meu marido, preocupados, fomos ver o mar. Olhávamos um ao outro, tristes, pedindo a Deus que cuidasse de nós, pequenos e humildes. O mar estava calmo.
Eis que de repente, se elevou uma onda grande. Bateu nas pedras. E ao se retirar, ficaram milhares de sardinhas presas nas pedras. Eu tirei a anágua e a enchi de peixes. Fui correndo chamar meus quatro vizinhos, também pescadores. Ao chegarem, veio outra onda, trazendo ainda mais peixes. Todos encheram suas bacias e ainda sobrou peixe nas pedras. Deus escutou a prece dos pequenos e humildes".
E ainda há pessoas que não crêem em milagres porque não ativaram seus sentidos espirituais. Se os ativarem, vão descobrir muitos e muitos milagres em suas próprias vidas. Mas há uma condição: fazer-se pequeno e humilde como Ana e seu marido. Sai rezando ao Deus de Ana pedindo que me fizesse pequeno e humildade.
Grande era Ana, pequeno era eu.
Autor: Leonardo Boff.