Este é o último livro do filósofo francês André Gorz, escrito para homenagear sua mulher, Dorine, com quem partilhou a vida por quase sessenta anos. O casal cometeu suicIdio em 22 de setembro de 2007; os corpos foram encontrados um ao lado do outro, e um cartaz, na porta de sua casa, pedindo que a polícia fosse avisada. Gorz, discípulo de Sartre e co-fundador do 'Le Nouvel Observateur', era um crítico radical da mercantilização das relações sociais, contrário à crença no trabalho assalariado, além de ser autor de vários livros sobre ecologia. Desde o início da década de 90 vivia em retiro com a mulher, que sofria, há anos, de uma doença degenerativa. Os dois viveram uma grande história de amor e companheirismo, após terem se conhecido em Lausanne, numa noite de neve, em outubro de 1947. Desde então, nunca mais se separaram.
Eis como começa o livro, escrito em 2006.
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e dois anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
O parágrafo foi bastante lembrado no fim do ano passado, quando veio a notícia de André Gorz e sua mulher, Dorine, suicidaram-se. Ela sofria de uma doença degenerativa há muitos anos. Eles se conheceram em 1947.
Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura.
Entra em discussão o tema do casamento.
Eu tinha objeções de princípio, ideológicas. Para mim o casamento era uma instituição burguesa; eu considerava que ele codificava juridicamente e socializava uma relação que, sendo de amor, ligava duas pessoas no que elas tinham de menos social [...] Eu dizia: “O que nos prova que, em dez ou vinte anos, nosso pacto para a vida inteira corresponderá ao desejo do que teremos nos tornado?”
A sua reposta era incontornável: “Se você se une a alguém para a vida inteira, os dois estão pondo em comum sua vida e deixarão de fazer o que divide ou contraria a união. A construção do casal é um projeto comum aos dois, e vocês nunca terminarão de confirmá-lo, de adaptá-lo e de reorientá-lo em função das situações que forem mudando. Nós seremos o que fizermos juntos”. Era quase Sartre.
Naturalmente, o segredo está no sentido que se atribui ao termo “adaptá-lo”. Sartre e Simone de Beauvoir construíram uma vida em comum que se “adaptou” aos inúmeros casos que ambos tiveram fora da relação. O problema começa quando há desacordo a respeito das formas com que cada um dos cônjuges concebe a “adaptação”. É muito provável que um dos lados “se adapte” mais do que o outro... (MARCELO COELHO)
CARTA A D. - HISTORIA DE UM AMOR
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