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Senhoras do Santíssimo Feminino

Márcia Frazão*

Márcia Frazão nos um excerto do seu último livro acabado de publicar pela editora Record, "Senhoras do Santíssimo Feminino". Leia um trecho.

Se fosse eu ou você a receber a visita da Santíssima, provavelmente a ocuparíamos com nossos pedidos e um rosário de queixas. Mas Virgínia fora criada numa época em que as visitas eram recebidas com graças e alegria. "Onde já se viu reclamar da vida para uma visita!?", era o que ela retrucava quando alguém lhe indagava sobre o porquê de não ter aproveitado a ocasião para reclamar da pobreza e privação da sua vida no morro. E, assim, contrariando toda e qualquer lógica, Virgínia a recebeu com graças. Agradeceu pela visita da mesma forma que agradeceu por estar viva, saudável e forte para criar os filhos. Agradeceu pelo tecto que a abrigava nos dias de chuva e pela comida pouca, mas suficiente para todos. Agradeceu pela alegria de poder rir, mesmo nos momentos mais difíceis, e pela dádiva de ter amigas ao lado para desperdiçar conversa e uma família que embora distante, lá pras bandas de Mangualde, toda noite a visitava em sonhos. Agradeceu pelo terço de caroços de azeitona que ganhara da avó, pelo único vestido que tinha para ir à missa, pela xícara de açúcar nunca negada aos vizinhos e pelas pequenas satisfações que a vida lhe oferecia a cada dia.

Se fosse eu ou você a viver a vida que Virgínia vivia, quase nada encontraríamos para agradecer. Mas ela, por interferência das santíssimas e por sua mania de fazer de um limão uma limonada, era diferente. Desde pequena aprendera a extrair o belo das coisas mais feias. Então, se não tinha dinheiro para colocar cortinas nas janelas, dependurava samambaias em torno delas; se havia apenas um par de sapatos de "festa" para calçar as quatro meninas, tratava de organizar horários diferentes para que cada uma fosse à missa calçada com esses sapatos; se o dinheiro faltava para comprar manteiga, juntava a nata do leite e a batia enquanto cantava um fado; e quando os filhos sofriam porque não podiam ir ao cinema, inventava para eles aventuras de reis, príncipes e rainhas de fazer inveja em qualquer director de Hollywood.

E foi justamente a sua capacidade de fazer de um limão uma limonada que abriu uma brecha para a Santíssima oferecer uma dádiva à sua anfitriã sem que esta percebesse: por arte santíssima, uma medalha de Nossa Senhora das Graças foi parar dentro da batata que Virgínia descascava com a intenção de assar para a ilustre visita! Uma pequena medalha de prata que brilhava tanto quanto um sol de meio-dia.

Se fosse eu ou você a encontrar uma medalha dentro de uma batata, provavelmente correríamos até ao sector de reclamação do supermercado e depois para algum departamento de controle dos alimentos. Mas Virgínia era diferente e com orgulho a dependurou no pescoço e assou a batata, pois era a única que sobrara. A Santíssima elogiou a receita e a degustou com satisfação.

Durante toda tarde conversaram sobre temas como filhos, carestia da vida, rumos do mundo, dores, alegrias e expectativas, até que o sol se recolheu, indicando a Santíssima que já era hora de ir embora.

Naquele tempo, a violência ainda não havia minado as fundações das ruas e a educação norteava pobres e ricos. Assim, por verdadeira educação, Virgínia acompanhou a Santíssima pelas vielas do morro até ao ponto do bonde no Largo do Estácio.

A descida durou um pouco mais do que o habitual, devido às muitas paradas nos portões da vizinhança (naquela época, as pessoas tinham o costume de colocar cadeiras no portão para esperar a noite e os vizinhos passarem).

Embora Virgínia não tenha revelado a altíssima identidade da Santíssima, pelo gosto de acolher mais um amigo ou por conhecimento intuitivo, as pessoas se iluminavam quando a Santíssima lhes estendia as mãos e dizia: "Muito prazer, Maria Imaculada das Graças".

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Sobre o Autor

Márcia Frazão: Márcia Frazão nasceu em 1951, no Rio de Janeiro. Estudou Filosofia na UFRJ. Reside em Nova Friburgo, onde cultiva ervas, legumes e verduras em uma horta mágica, assa pães e bolos, biscoitos e tortas numa cozinha igualmente mágica. Publicou O Feitiço da Lua, Oráculo dos Astros, Manual Mágico do Amor, A Panela de Afrodite, Amor se faz na Cozinha. E acaba de publicar pela Record Editora o livro: SENHORAS DO SANTÍSSIMO FEMININO.

 

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