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Um ano feliz nas locadoras: da tragédia de Wright à leveza de Mankiewicz

por Chico Lopes *
publicado em 09/06/2008.

Para os leitores que acompanham meus comentários sobre filmes por aqui, ressalto que 2008 está sendo um bom ano para quem gosta de cinema mais adulto e prefere se ater ao que encontra em DVDs nas locadoras. A safra dos indicados e premiados do Oscar 2008 é de qualidade excepcionalmente alta. E, quando se vê alguns filmes preteridos em favor de coisas apenas medianas/boazinhas, recebendo menos estatuetas ou nenhuma, mas infinitamente melhores, esquece-se a injustiça inevitavelmente mundana e publicitária das premiações e lava-se a alma.

JOE WRIGHT E A EXPIAÇÃO - "Desejo e reparação", com sete indicações ao Oscar e vencedor apenas com a trilha sonora de Dario Marianelli, chega às locadoras precedido por tantos elogios e comentários que poderá desapontar quem espera um melodrama ao gênero romântico/espetacular com muitas lágrimas, cenas de guerra bem acadêmicas etc.

Se é o caso do leitor, saiba que filme passa por isso, mas não é isso. Em alguns momentos, poderia cair nesse gênero, que nos últimos anos voltou à popularidade devido à habilidade do falecido diretor Anthony Minghella (de "O paciente inglês" e "Cold mountain"). Mas no conjunto é decididamente superior, muito mais corajoso e bonito.

O que o redime é exatamente o inusitado de seu realismo, bem como o inusitado de mexer com tabus do cinema comercial (a participação de Vanessa Redgrave faz uma diferença fundamental e o que ela enuncia é extraordinariamente forte). Em geral, roteiros de embocadura trágica (e este trata do mal irremediável que as pessoas podem fazer umas às outras) são amaciados em favor do público e da indústria, mas não é de modo algum o que acontece aqui.

Tudo funciona. O famoso plano-sequência da chegada dos britânicos à praia francesa na Segunda Guerra é deslumbrante, clássico e necessário, dando a pintura exata do pesadelo, da alucinação absurda que a guerra é na cabeça do herói, não bastasse ele já estar supliciado pela injustiça sócio/policial que sofrera e só sonhando com voltar aos braços de sua amada.

Joe Wright, que fizera com rara beleza e perícia "Orgulho e preconceito", usa Keira Knightley (Cecília Tallis) pela segunda vez, e muito bem (ela está mais sensual e bonita, e seu vestido verde na noite fatídica é algo que não sairá da lembrança dos espectadores; tem tanta vida e força quanto o vermelho usado por Bette Davis, em "Jezebel", que parecia escarlate mesmo num filme em preto e branco!). JamesMcAvoy é surpreendente, muito convincente como Robbie, banhado pela luz e pelo tormento de sua paixão.

Mas o filme é melhor e mais anticonvencional, de fato, em sua primeira parte, com a menina Saoirse Ronan iluminada no papel de Briony, centro de toda a trama. A fotografia, de Seamus McGarvey, é muito bonita. E é um achado Marianelli ter colocado os sons da máquina de escrever como complemento à música da trilha.

Um filme que se vê gratificado, com a sensação de que o grande Cinema - sempre muito perto da verdadeira vida - não acabou, e há muito que esperar de Joe Wright.

SOMBRAS DO IRAQUE - Tommy Lee Jones, que fez um papel infeliz e insosso como o xerife de "Onde os fracos não têm vez", se redime em "No vale das sombras", em que está realmente extraordinário.

Dirigido por Paul Haggis, de "Crash", ele é senhor do filme todo, tanto que Susan Sarandon, outro grande nome do elenco, no papel da esposa dele, faz pouca coisa, e limita-se a desabar em prantos quando chega a notícia da perda do filho único. A dor de Jones, mais impassível, ao dar a notícia à mulher por telefone, talvez nos desespere mais ainda, porque ele é supremamente contido, e adivinhar o tumulto interior que vai sob aquela cara duríssima e expressiva gera uma cumplicidade muito maior no espectador.

Ele é um militar veterano e cansado cujo filho, que serve no Iraque, ao voltar para casa, não dá as caras em casa: desapareceu. Ele começa, com a ajuda de uma policial (Charlize Theron, sempre fazendo o tolo esforço de parecer menos linda para parecer atriz mais séria), uma investigação que trará à tona uma série de realidades aterradoras. De repente, a guerra do Iraque não é mais ocasião para demonstrar aquele heroísmo machão que ele cultiva ingênua e honestamente, e que sua mulher, com razão, critica - pode ser bem outra coisa, mais absurda e sinistra.

As revelações, nesse filme, dão mais calafrios que muitas de filmes de terror. Entre elas, estará a razão pelo qual seu querido filho é conhecido, entre os soldados, como "doutor". E o final, quando Jones faz com a bandeira norte-americana um gesto muito significativo, é também muito forte.

MACHÕES ILUMINADOS - Os que gostam de faroestes gostam precisamente pelas razões que outros os detestam: filmes em geral rudes e másculos, com pouco sentimento e muita ação, e aquela coisa de brutos que se admiram e competem entre si de um modo apaixonadamente misógino que já foi satirizada e parcialmente desmistificada por "Brokeback mountain" (era admiração e macheza demais para não ser também amor).

O gênero, claro, é muito mais que isso - Borges lembra que o "western" salvou o épico para o público do século XX - e, para mim, é particularmente satisfatório em sua forma mais clássica, com todos os ingredientes se repetindo e com os clichês ganhando renovação sob efeito de diretores atualizados e inteligentes.

Clint Eastwood fez "Os imperdoáveis" com beleza e agora James Mangold oferece "Os indomáveis", com Russell Crowe e Christian Bale, remake de "Galante e sanguinário", velho western de Glenn Ford. Não é tão grandioso, artisticamente falando, como o filme de Eastwood, mas é muito bem feito e competente. Crowe e Bale estão excelentes nessa história que é, basicamente, a relação eternamente ambígua, de ódio, dependência, admiração, afeto, respeito, honra, entre um bandido irrecuperável e um rancheiro decente que precisa levá-lo preso (pela recompensa, vital para a sua sobrevivência, e a de sua família) a determinado trem (para Yuma, no título original).

Para não faltar provocação, já que o filme é atual, Ben Forster, ator pouco conhecido, faz o sujeito que admira seu chefe (Crowe) de um modo bem duvidoso (embora não se force a barra, quando grita "boss, boss", para cá e para lá, vê-se que aquilo é paixonite). A história é tensa, o roteiro bem amarrado, tudo funciona muito bem para quem gosta do gênero. Para não se perder.

SEM BOIS DIGITAIS - Tendo visto o recente "Os indomáveis", tive vontade de voltar a ver faroestes clássicos, e loquei "Rio Vermelho", de Howard Hawks, que eu não conhecia. É de 1948, e um filme tão coberto de elogios e referências que não vê-lo é quase um pecado mortal na vida de um cinéfilo.

E que filme, santo Deus! Eastwoods e Mangolds que me perdoem, mas fazer faroestes como Ford e mesmo Hawks, jamais será possível outra vez. A poesia, mesmo em meio a machões dos mais empedernidos, a couro de boi, poeira, lágrimas e suor de cavalo, está lá, naquele modo de narrar tão fluente e aparentemente despreocupado que Hawks tinha (o filme vai num ritmo tão tranqüilo e saboroso que vê-lo é como sentar-se em torno de uma fogueira e ouvir um contador de histórias dos mais simpáticos).
É a história de um homem que perde a mulher amada num massacre comanche e decide erguer suas terras num pedaço hostil do Texas, virando um grande rancheiro e proprietário de gado, com um filho adotivo. Obstinado, cabeça-dura até a paranóia, é um sujeito terrivelmente autoritário, mas tem coração... Ele é John Wayne e o adotivo, Montgomery Clift, em seu primeiro filme. Clift nasceu para aquele tipo de papel, com aquele olhar que dispensava palavras.

Esses dois estavam inspiradíssimos, ou Hawks é que "recebeu o santo" na direção? O certo é que a fama de obra-prima que o filme tem é inteiramente justificada. E, como coadjuvante, Walter Brennan, que com Hawks fez outros papéis memoráveis em "Onde começa o inferno" e "Uma aventura na Martinica", é o velhinho mais simpático, humano e cheio de vitalidade cômica de todos os faroestes.

É uma lição de Cinema, principalmente pra moçada, que hoje em dia vê "O senhor dos anéis" e "A bússola de ouro" e congêneres e se embasbaca com os efeitos visuais.

Em "Rio Vermelho", há o estouro de boiada mais famoso da história do Cinema, e aquilo é real, nenhum boi é digital, e a cena tem uma força épica muito maior que qualquer outra pirotecnia apresentada por "O senhor dos anéis", que, para mim (os fãs que me perdoem), é só um mastodonte soporífero.

TIERNEY E SEU DELICIOSO FANTASMA - O melhor da festa em locadoras se faz mesmo é no campo dos clássicos, que vêm saindo em DVD com regularidade e às vezes nos reservam surpresas maravilhosas. Uma delas é "O fantasma apaixonado", realizado em 1947 por Joseph L. Mankiewicz, o mesmo diretor de "A malvada".

Mankiewicz conta a história de uma viúva inglesa (Gene Tierney) que, deixando a família chata que lhe restou do marido (a cunhada e a sogra), decide morar sozinha (com a filha, Natalie Wood ainda pequenina) numa casa à beira-mar que a encanta. Um corretor a adverte para o fato de que a casa tem um fantasma, mas, mesmo assim, ela se instala. E o fantasma é um velho marinheiro (Rex Harrison), que vai se tornar é amigo e conselheiro dela.

A coisa assume aqueles ares paternalistas e sentimentais desse tipo de relação na Hollywood dos anos 40, mas Harrison é uma presença transgressora e erótica, ainda que velada pelas convenções. Quando ele dita suas memórias de "velho lobo do mar" para Tierney, o faz com palavrões que a deixam envergonhada. Numa boa cena, ela se recusa a escrever certa palavra, mas ele a exige, e ela a tecla - quatro letrinhas... (Pode-se imaginar qual é o palavrão, e a graça está é que "palavrão", em Inglês, é "four-letter Word", portanto, os que sabem Inglês, podem imaginar o que Tierney teclou...)

Na verdade, Harrison, macho-paca e cavalheiro, desperta a mulher que há em Tierney, uma viúva insatisfeita. Mas ela descobrirá um encanto masculino mais concreto é no muito vivo George Sanders, noutro de seus papéis de sedutor canalha, com aquela voz de cobra sussurrante. Tierney terá uma triste surpresa quando souber quem é ele de fato.

Uma delícia, e a fotografia, em preto e branco belíssimo, de Charles Lang, ganhou um Oscar. A trilha sonora é de ninguém menos que Bernard Herrmann, autor das trilhas mais famosas para Hitchcock, que cria uma atmosfera romântica e tensa para os devaneios de Tierney, curiosamente prenunciadora da atmosfera de "Um corpo que cai", a obra-prima de trilha sonora, a mais perfeita do Cinema, que faria em 1958 com o Mestre do Suspense.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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